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Voluntários entregam comida para judeus pobres ilhados por coronavírus em SP

Maioria dos beneficiados são idosos e frequentavam o refeitório do Ten Yad, que está fechado na quarentena

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São Paulo

O almoço era o momento do dia mais aguardado pela economista Sandra Pryngler, 66. Era também a chance que ela tinha de colocar “a cara no sol”.

Perto do meio-dia, deixava o quarto em que aluga num apartamento e caminhava oito quarteirões até um refeitório no Bom Retiro, no centro de São Paulo, sempre de domingo a sexta-feira.

Sergio Meling, 55,  recebe sua comida de Renato Levi, um dos novos entregadores voluntários de comida do Ten Yad, em SP
Sergio Meling, 55, recebe sua comida de Renato Levi, um dos novos entregadores voluntários de comida do Ten Yad, em SP - Zanone Fraissat/Folhapress

Além da comida quentinha, saborosa e gratuita, Pryngler gostava de encontrar as amigas já sentadas no espaço à espera dela. “A gente jogava conversa fora, ria uma da outra, tomava café até mais tarde. A presença delas movimentava a minha vida”, diz.

Mas a pandemia do novo coronavírus mudou tudo. O refeitório fechou o bufê, e Pryngler e suas amigas estão trancafiadas em casa desde então porque a maioria é idosa e mais vulnerável à Covid-19.

Mesmo sem sair de casa, Pringler continua se alimentando da mesma comida. A diferença é que, agora, a refeição chega diretamente ao apartamento dela durante a quarentena.

A economista é uma das 600 beneficiadas pelo refeitório do Ten Yad, instituição beneficente israelita criada há 28 anos pela comunidade judaica na capital paulista.

O refeitório é um dos projetos assistenciais da entidade e atende desempregados, gente que fechou empresas, idosos e aposentados com renda de apenas um salário mínimo –a maioria judeus.

É o caso de Pryngler. Neta de polacos judeus, ela foi empresária do ramo de confecções por mais de 30 anos. No auge do negócio, chegou a comandar cinco lojas de moda feminina, mas faliu em 2005. Solteira e sem filhos, vive de doações.

A refeição preparada no prédio da ONG, na rua Newton Prado, também atrai a comunidade judaica por ser kosher, um selo religioso que assegura que o preparo do alimento segue à risca aquilo que determina a Torá, o livro sagrado dos judeus.

Um exemplo da prática: não se manuseia ou armazena leite, de forma alguma, no mesmo local onde a carne é preparada, e vice-versa.

Metade dos beneficiados do Ten Yad já recebia comida em casa. Nesse grupo estão as pessoas muito idosas, com doenças crônicas e algum problema de mobilidade. Mas não havia braço disponível para fazer a entrega das outras 300 refeições de uma hora para outra, explica o diretor Berel Weitman.

“Mesmo depois do refeitório fechado, chegamos a distribuir as marmitas por dois dias na porta do Ten Yad porque os velhinhos insistiam em manter o hábito de buscar a comida”, diz.

O próprio preparo das refeições, segundo Weitman, já havia sido afetado porque cerca de 200 voluntárias que se revezavam na cozinha da instituição estão afastadas das funções para se protegerem.

A saída encontrada para não formar aglomerações e manter os mais vulneráveis protegidos em casa foi captar novos entregadores voluntários de comida de forma emergencial.

Weitman, que também é rabino, usou a mesma expertise que construiu nas redes sociais na interação com os mais jovens de sua comunidade para fazer uma convocação pública. “Precisamos de novos voluntários”.

Deu match. Cerca de cem pessoas, entre motoqueiros, ciclistas, motoristas de aplicativo e até gente a pé, ofereceram-se para ajudar. “Foi uma explosão de solidariedade”, afirma Weitman.

A etapa seguinte foi criar uma logística de distribuição para a comida chegar ainda quentinha aos assistidos, tarefa desempenhada por Carla Dayan, 43, uma das coordenadoras do projeto.

“Cada voluntário ficou responsável por um roteiro de entregas com até oito refeições”, diz Dayan. As marmitas contêm arroz, carnes, massa e salada. São acompanhadas por pão, sopa e uma fruta.

Renato Levi, 52, consultor da área comercial, é um dos novos entregadores. Ele diz gastar 45 minutos do seu dia para levar as refeições no baú de sua moto até o endereço dos beneficiados do Ten Yad. “É uma ajuda humanitária. São idosos que não podem sair de casa e não têm condições de comprar comida porque são pobres”, conta.

Levi afirma que, antes de participar da iniciativa, passou por um conflito. “Pensei bem, porque estar nas ruas significaria quebrar a minha quarentena. Mas o motivo é muito válido”, diz ele, que sai nas ruas equipado com máscara, luva e álcool em gel.

As entregas não acontecem aos sábados, mas as refeições referentes a este dia são recebidas pelos assistidos às sextas-feiras. O sábado é o dia de descanso para os judeus.

Para ser beneficiado pelas refeições produzidas pelo Ten Yad, no Bom Retiro, não é preciso ser judeu, mas é necessário ter predileção pela cultura judaica.

O interessado precisa comprovar estar em dificuldade financeira e ter disposição para passar por entrevistas e até receber visitas em casa de assistentes sociais da entidade.

DOAÇÕES

O Ten Yad é amparado financeiramente por doações de famílias e empresários judeus. Para manter uma dezena de projetos, que vão além da produção de marmitas, a entidade gasta cerca de R$ 14 milhões por ano.

O rabino Berel Weitman diz estar preocupado porque a demanda pelos serviços oferecidos pela entidade só cresce. “O ritmo da procura tem sido muito maior do que o das doações. É uma equação que não fecha”.

Além de seu refeitório próprio, o Ten Yad administra uma unidade do Bom Prato, restaurante do governo do Estado, no Glicério (centro). O local passou a servir jantar desde a semana passada —são cerca de 1.800 refeições diárias.

O próximo desafio, conta Weitman, será o de criar uma rede de escuta para puxar papo com os idosos, uma tentativa de simular as mesmas rodas de conversa feitas por eles no refeitório da instituição.

A arquiteta aposentada e também ex-empresária Julianna Boda, 82, diz que vai amar receber ligações. Ela vive com o filho, atualmente desempregado, num apartamento em Vila Buarque, bairro da região central da capital paulista.

Além das refeições diárias, Boda diz já ter recebido do Ten Yad os ingredientes da Páscoa judaica, que começa no início da noite desta quarta-feira (8). “Será uma Páscoa diferente, solitária. Façamos uma reflexão nesse momento”.

Melhor, diz ela, "façamos Ten Yad: estendam as mãos ao próximo", numa tradução literal do hebraico sobre a expressão que batiza o nome da instituição do Bom Retiro.

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