Chefia de hospital federal que pegou fogo no Rio orienta funcionários a restringir entrevistas

Hospital de Bonsucesso afirma que divulgação de 'caráter oficial' deve ser previamente aprovada; médico que denuncia problemas na unidade foi transferido

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Rio de Janeiro

A chefia do Hospital Federal de Bonsucesso, que pegou fogo há um mês no Rio de Janeiro, enviou um ofício aos funcionários orientando que todas as entrevistas utilizadas “para divulgação ou informação oficial” devem ser previamente avaliadas pelo diretor da unidade, Edson Santana, e aprovadas pela Superintendência Estadual do Ministério da Saúde.

O ofício assinado por Santana não deixa claro que tipo de entrevista seria considerada uma declaração em nome da unidade hospitalar, mas sustenta que “a liberdade de expressão individual mantém-se plenamente respeitada e preservada”. Essa ressalva não foi feita, no entanto, em comunicação enviada pela coordenação de enfermagem a funcionários do setor.

Trabalhadores do hospital acreditam que a orientação da diretoria é uma forma de intimidá-los e pressioná-los a não compartilhar informações negativas sobre a unidade de saúde, que mesmo antes de pegar fogo já lidava com graves problemas, como a falta de funcionários.

Há duas semanas, pouco depois do incêndio que resultou na morte de pacientes e fechou um dos prédios do hospital, o superintendente do Ministério da Saúde no Rio de Janeiro, George Diverio, determinou que o médico Júlio Noronha fosse transferido para o Hospital Federal da Lagoa.

Noronha é presidente do corpo clínico do hospital de Bonsucesso, cargo para o qual foi eleito pelos funcionários, e costuma denunciar publicamente as dificuldades enfrentadas na unidade. Ele acredita que a ordem para a sua transferência foi uma forma de puni-lo por essa divulgação.

“Isso é o fim da picada, eu não vou [mudar de hospital]. Acho que isso é uma punição, um absurdo. Estou aqui desde 1978. Tenho uma ação ganha esse ano dizendo que não poderiam me tirar, porque já tentaram me tirar da mesma forma no ano passado quando denunciei uma outra questão desse Ministério da Saúde”, disse à Folha.

O médico afirma que é responsabilidade do corpo clínico resguardar o trabalho dos funcionários e o bom atendimento dos pacientes. Acrescenta que, se os representantes forem punidos por denunciar os problemas do hospital, ninguém mais irá querer ser eleito para o grupo.

A reportagem entrou em contato com a assessoria de imprensa do hospital para questionar sobre o comunicado enviado aos funcionários, e o que aconteceria se algum deles desobedecesse a orientação da diretoria, mas não obteve resposta.

No dia 27 de outubro um incêndio atingiu um dos prédios do complexo hospitalar federal onde estavam localizados o CTI (Centro de Terapia Intensiva), o setor de nefrologia e as enfermarias de emergência. O bloco foi interditado pela Defesa Civil, que identificou risco estrutural nas instalações.

Mais de uma centena de pacientes teve que ser transferida para outras unidades de saúde, e a imprensa já contabiliza que pelo menos 16 dessas pessoas acabaram morrendo.

A Polícia Federal investiga as causas do incêndio, que teve início no almoxarifado. A corporação tem colhido depoimentos, como o de brigadistas que combateram o fogo.

Peritos criminais realizam buscas internas por vestígios que possam ajudar a solucionar o caso. Para isso, uma empresa especializada teve que fazer um trabalho de escoramento, buscando evitar o risco de desabamento da estrutura enquanto os peritos circulam no local.

Por enquanto, o prédio atingido permanece completamente fechado. Outros cinco funcionam, sendo um parcialmente.

Após o incêndio, o hospital informou a continuidade de consultas ambulatoriais, sessões de quimioterapia, entrega de medicamentos oncológicos, exames laboratoriais, retirada de resultados e doação de sangue. Estão suspensas emergências, cirurgias, internações, hemodiálise e exames de imagens.

Incêndio que atingiu o Hospital Federal de Bonsucesso, no Rio de Janeiro, ao final de outubro - Reprodução/TV Globo

Em setembro do ano passado, a DPU (Defensoria Pública da União) já havia cobrado explicações da direção do hospital sobre a estrutura de combate a incêndios na unidade.

Na ocasião, de acordo com o órgão, o sistema de combate a incêndios do hospital era precário. Não havia sistema de detecção de fumaça e sprinklers (componentes que soltam água em caso de emergência).

Reportagem da Folha também mostrou que um relatório do próprio governo federal indicava que o hospital não tinha um plano de combate a incêndio.

A avaliação feita por engenheiros apontou que o risco de incêndio no prédio era alto. Três geradores estavam mal conservados e dois transformadores estavam superaquecidos. O edifício não possuía autorização do Corpo de Bombeiros.

O documento indicava que o hospital não contava com detector ou alerta de fumaça, escadas pressurizadas, elevadores à prova de fogo ou chuveiros automáticos.

Apesar dos problemas, o Hospital de Bonsucesso chegou a ser anunciado pelo Ministério da Saúde como unidade de referência no tratamento de pacientes da Covid-19.

Mas, durante a pandemia, o hospital sofreu com a insuficiência de funcionários, o que resultou num acúmulo de leitos ociosos, e com a falta de equipamentos de proteção.

A situação era tão grave que funcionários chegaram a denunciar uma “maquiagem” feita na unidade antes da visita do ex-ministro da Saúde, Nelson Teich. Eles disseram que, antes da chegada do ministro, pacientes foram levados às pressas para o hospital, com o objetivo de disfarçar os leitos ociosos.

Em maio, a Justiça Federal do Rio intimou o Ministério da Saúde a substituir a direção do hospital por omissão no enfrentamento à pandemia. Posteriormente, o TRF-2 (Tribunal Regional Federal da 2ª Região) suspendeu a liminar da primeira instância, garantindo a permanência da diretoria.

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