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Livro não responde quem mandou matar Marielle, mas ilumina submundo das milícias no Rio

'Mataram Marielle', obra de Chico Otávio e Vera Araújo analisa bastidores de investigação mal conduzida

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São Paulo

O primeiro livro-reportagem sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, dos jornalistas de O Globo Chico Otavio e Vera Araújo, tem um título direto: “Mataram Marielle”.

Não traz as interrogações quase sempre presentes nesse caso, o que não significa, porém, que o leitor acabará com todas elas e, em especial, com a principal dúvida: quem mandou matar Marielle?

A obra não traz essa resposta. Até porque, ao que se sabe, nem a polícia a tem, mas tal ausência faz a obra parecer ainda incompleta —ou prematura.

Por ser um trabalho de jornalistas investigativos capazes de superar o trabalho da polícia, como chegaram a fazer nesses dois anos, gera certa frustação o livro passar ao largo de revelações nesse sentido.

O que não significa que o livro, lançado pela editora Intrínseca, não tenha sua relevância e mereça ser lido. Merece, principalmente por quem não conhece o perfil ímpar da criminalidade fluminense e não tem a dimensão exata das pessoas com as quais a família Bolsonaro (várias vezes citada na obra) se relacionava no Rio, como o ex-capitão e miliciano Adriano Nóbrega.

Entre os pontos mais importantes estão os bastidores da investigação policial descrita como quase amadora, o que ocasionou uma série de erros primários e desperdício de provas —como imagens potencialmente reveladoras. Um triste retrato que ajuda o leitor a entender por que algumas respostas ainda não foram alcançadas pela sociedade e, talvez, nunca sejam.

Exemplo dessas falhas é a decisão de delegados de seguir, por muito tempo, uma única linha de investigação que, ao final, mostrou-se infundada. Caso do envolvimento do miliciano Orlando Curicica e o vereador Marcelo Siciliano, apontados como os mandantes do crime por um PM, que, depois, confessou ter mentido para prejudicar Curicica, seu principal desafeto.

“Se temos um alvo, para que buscar mais? Vamos checar tudo o que Ferreira [PM denunciante] nos passou e correr atrás de evidências que provem que Curicica e Siciliano são os mandantes da morte de Marielle e Anderson”, diz um dos policiais, conforme reproduzido no livro.

Outro ponto forte da obra, talvez a melhor parte, é a forma como os autores apresentam os suspeitos, como o próprio capitão Adriano, Orlando Curicica, Ronnie Lessa, preso sob a suspeita de ser o executor do crime e todo o contexto que envolve esses personagens no cenário carioca.

A riqueza de detalhes o livro consegue ajudar a entender essa engrenagem criminosa que permeia o caso Marielle e tantos outros crimes do cotidiano fluminense. Daí o subtítulo: “Como o Assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes Escancarou o Submundo do Crime Carioca”.

Essa imersão ao submundo do crime fluminense é algo que um dos autores já tinha feito em uma das obras que são referência sobre o assunto. “Os Porões da Contravenção”, escrito por Chico Otavio em parceria com Aloy Jupiara, foi lançado pela Record, em 2015.

Os dois livros têm isso em comum e, também, um texto direto, frio, estruturado quase como uma reportagem clássica, o que pode frustrar aquele que compra um livro esperando se emocionar. É informação atrás de informação, sem buscar lágrimas ou endeusamentos.

O mais perto de alguma emoção são os relatos da jornalista Fernanda Chaves, então assessora de Marielle, única sobrevivente do ataque de 14 de março de 2018.

A narrativa, aliás, apresenta Marielle como uma vereadora nada excepcional. Uma mulher batalhadora, com causas importantes a defender e com futuro promissor pela frente, mas que ainda lutava para se firmar na política, inclusive no próprio partido (PSOL), com o qual demonstrava desapontamentos.

“A senhora não sabe como a política é sórdida. Estou precisando de oração. Ora por mim?”, teria pedido Marielle a uma tia querida, pouco tempo antes de morrer.

Essas eram, segundo o livro, as únicas preocupações manifestadas por Marielle à época. Não havia nenhuma ameaça de morte ou motivos para preocupação relevantes. Nenhum projeto polêmico ou brigas ostensivas e diretas com criminosos (milicianos ou não). Se chegou a incomodar alguém a ponto de gerar ódio, isso não ficou nítido para ninguém. Talvez nem para ela.

“Eu seria o primeiro a saber se Marielle estivesse recebendo algum tipo de ameaça”, diz na obra Vinícius George, do PSOL. “Nunca, jamais comentou algo sobre o assunto.”

O único vereador com quem ela tinha uma relação mais tensa na Câmara do Rio, que não chegava a ser classificado como um inimigo, era Carlos Bolsonaro —segundo a obra, ele comportava-se de maneira preconceituosa às vezes, por exemplo evitando embarcar no elevador com assessores de Marielle. Era, em geral, querida pelos colegas da Casa, como em outros lugares, pelo perfil pacífico.

Essa falta de uma motivação clara, a ausência de inimigos declarados, deixa mais complicadas as chances de a polícia conseguir responder quem tinha interesse na morte da vereadora. Essa é a grande pergunta não respondida, e a obra não ajuda a entendê-la.

As teses apresentadas pela polícia e citadas no livro seriam de que se tratou de um ataque indireto a Marcelo Freixo (PSOL), por uma série de motivos, e até uma questão pessoal de Ronnie Lessa, descrito como um miliciano preconceituoso, que odiava a esquerda. “Acreditamos que ele [Lessa] tenha realmente praticado o crime a mando de alguém”, dizem os autores à Folha.

“As investigações estão em andamento. Não poderíamos ser levianos de cravar uma motivação, quando nem a polícia, nem tampouco o Ministério Público, chegaram a uma conclusão sobre o caso [...] A polícia está avançando numa linha de investigação que deve ter uma conclusão rápida, mas continuamos na nossa própria apuração. A investigação tem seu próprio tempo”, afirmam os autores.

Mataram Marielle: Como o assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes escancarou o submundo do crime carioca

  • Preço R$ 49,90 (224 págs.); R$ 24,90 (ebook)
  • Autor Chico Otavio e Vera Araújo
  • Editora Intrínseca
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