Morador pede na Justiça apagamento de mural com referências afro e indígenas em BH

Na petição, homem argumentou que obra da artista Criola seria de gosto duvidoso

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Belo Horizonte

Em novembro de 2018, um grupo de moradores do edifício Chiquito Lopes, no Centro de Belo Horizonte, se reuniu em uma assembleia extraordinária para discutir o mural que estava sendo pintado em uma empena do prédio de 14 andares, voltada para a rua dos Caetés.

A intervenção da artista mineira Criola, parte do festival Cura (Circuito Urbano de Arte de Belo Horizonte), já havia sido iniciada, mas causou insatisfação em um dos moradores que exigiu que o trabalho fosse suspenso. “Não é uma simples pintura, é uma decoração de gosto duvidoso”, escreveu ele em uma mensagem enviada pelo WhatsApp ao síndico.

A artista, Criola, diz que seu mural em BH que é alvo de disputa na Justiça é homenagem aos povos afro-pindorâmicos - Área de Serviço/Divulgação

Um dia antes da assembleia, o homem entrou na Justiça com uma petição inicial para que a obra fosse embargada e que o condomínio e o síndico desfizessem a “pintura irregular” —o juiz negou o pedido.

Dois anos depois, o caso segue na 22ª Vara Cível de BH; recentemente o Cura pediu para ser incluído como parte interessada no caso.

Na última segunda-feira (30), questionado sobre o caso no programa Roda Viva da TV Cultura, o prefeito Alexandre Kalil (PSD), comentou dizendo: "Eu tenho dó desse boçal. Não passa de um boçaloide".

A obra de Criola, “Híbrida Astral - Guardiã Brasileira”, é um mural de cores fortes e vivas, ocupando 1.365 metros quadrados, com uma mulher negra no centro e referências afro, indígenas e ao universo feminino.

Criola diz ter querido aliar, no desenho, o tema dos povos que foram massacrados por um sistema racista e a questão da violência de gênero.

“O feminicídio está associado a destruição da natureza, então quis abordar todos esses pontos. Porque, como mulher preta brasileira, são temas que me afetam e me causam preocupação enquanto uma cidadã artivista”, explica ela.

Além de avaliar a obra como sendo de “gosto duvidoso”, o morador argumentou que ela poderia causar danos irreversíveis ao edifício.

A petição cita a lei 4.591 de 1964 e diz que a alteração não poderia acontecer sem aprovação unânime dos moradores. O condomínio porém afirma que o Código Civil em 2002 e a aprovação da maioria, em uma obra que não acarretou gastos, permitem isso.

A Folha tentou contato com os advogados do morador, mas não obteve resposta até o encerramento deste texto.

Na assembleia realizada com cerca de 55 moradores há dois anos, o homem foi o único contrário à obra. O prédio tem 167 apartamentos de um e dois quartos e cerca de 400 moradores, entre eles, idosos que moram sozinhos e estudantes vindos do interior.

A reunião, lembra Jana Macruz, uma das idealizadoras e curadoras do Cura, também virou uma discussão sobre arte. Ela lembra que uma das moradoras disse que o mural faria do edifício uma referência geográfica —com seus tons de cinza, o prédio, que pertenceu à Vale e teve seu uso adaptado para fins residenciais por uma construtora, não tem nada que faça com que se destaque na paisagem.

“A partir do momento que ele viu que a artista era negra e que seria desenhado o corpo de uma mulher negra com símbolos de matriz africana, acho que está explícito esse racismo”, diz Macruz. “O poder Judiciário está com uma questão forte nas mãos."

Neivaldo Ramos, 55, o síndico, que trabalhou na parte jurídica no Palácio das Artes e na Fundação Municipal de Cultura por anos, disse na assembleia não ser entendedor de arte, mas que o fato de gostar ou não da obra não faria dela menos artística.

“Continuo compreendendo que a arte não é para ser entendida. Mesmo que se passe a vida tentando interpretar, sempre haverá perspectivas diferentes”, disse ele à Folha.

A defesa de Neivaldo e do condomínio diz na contestação apresentada à Justiça que a postura do autor da petição é incompreensível e levantou a hipótese de que seu inconformismo denotaria racismo de sua parte.

Por padrão do festival, a obra não é revelada previamente. Para instalar o mural no Chiquito Lopes, o Cura, que tem 18 obras em fachadas e empenas da capital mineira, bancou a reforma da superfície, reparando o revestimento e tapando buracos da parede, danificada pela exposição às intempéries. “Era um serviço que teria um custo elevado para a gente”, avalia o síndico.

Segundo notas apresentadas pela defesa dele à Justiça, os reparos custaram em torno de R$ 105 mil. Jana Macruz diz que o festival tem realizado reparos desse tipo, a fim de garantir a durabilidade das obras.

Alguns murais da primeira edição, de 2017, que não passaram pelo preparo, já estão descascando. O acordo diz que o prédio pode apagar a obra depois de cinco anos.

“Uma decisão do Poder Judiciário determinando o apagamento da obra agora vai corroborar o racismo estrutural”, diz o advogado que representa o síndico e o condomínio, Joviano Maia Mayer.

Segundo o Cura, ainda que não tenham chegado à Justiça, outras duas obras enfrentaram episódios de preconceito.

Um turbante e uma vela fizeram com que um mural de Luna Bastos, em 2019, fosse trocado do local originalmente planejado para ele. Neste ano, serpentes gigantes do artista indígena Jaider Esbell foram alvo, em redes sociais, de críticas de cunho religioso e xenófobo, associando à obra a cultura chinesa.

Criola, que abriu com o Cura um abaixo-assinado contra o apagamento do mural, diz que não é a primeira vez que enfrenta racismo no seu trabalho.

Em São Paulo, um prédio rejeitou ter um mural seu em uma empena porque um dos conselheiros teria dito que não aceitaria nenhuma arte que tratasse de minorias, raça, credo e afins.

A artista, que assina com Diego Moura um painel com o retrato de Nelson Mandela no Minhocão, está tendo dificuldade de achar um novo espaço para a obra.

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