Descrição de chapéu Coronavírus

Com 667 óbitos, distrito de Sapopemba tem mais mortes por Covid do que 626 cidades de SP

Festas clandestinas e falta de emprego são vetores que colocam população do distrito em maior risco

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Sapopemba, o bairro onde mais gente morreu por Covid-19 Karime Xavier/Folhapress

São Paulo

O miniônibus da linha Hospital Sapopemba-Bresser deixa uma rua vizinha à estação de metrô Bresser-Mooca, na zona leste de São Paulo, com quatro passageiros, às 17h de terça (6).

No ponto seguinte, sobem cinco. Dez pontos depois, há mais de dez em pé. Todos com máscaras. Com a chuva que começa, as janelas vão sendo fechadas.

Uma mulher idosa não assume o risco de pegar Covid e segue a viagem se molhando.

O ônibus faz um trajeto que supera 60 paradas nas quase três horas de viagem até chegar em em Sapopemba, o distrito que soma mais óbitos por Covid na capital paulista. Ultrapassa, também, o saldo de mortos na pandemia de 626 das 645 cidades de São Paulo —inclusive o de municípios maiores, como Bauru.

Foram 667 desde março do ano passado, e 18.827 casos registrados, também o mais alto da cidade. O distrito é seguido por Brasilândia (499 mortos) e Grajaú (488), segundo a Secretaria Municipal de Saúde. Áreas mais ricas não chegam perto: Morumbi teve 98 mortes. Pinheiros, 129.

Com 300 mil habitantes, o distrito da zona leste abriga pessoas e famílias de classe média e classe baixa. Na topografia de morros e vales, onde a ausência de arranha-céus deixa o horizonte quase sempre a vista, despontam conjuntos de cinco e seis andares, os telhados de cortiços, favelas e terrenos baldios.

Para se chegar do centro da cidade até Sapopemba, um carro pode demorar cerca de uma hora pela marginal Tietê. Desde 2019, também opera a estação Sapopemba, a antepenúltima da linha prata, onde, em dias úteis, embarcam em média cerca de 5.000 pessoas.

Para o centro, é necessário fazer baldeação nas estações Vila Prudente (31 mil), Consolação (55 mil), e desembarcar em estações como Sé (125 mil) e República (76 mil). Os números, de fevereiro, estão no site de transparência do metrô.

A utilização do transporte público pode ser um vetor importante do alto índice de contaminação neste bairro e em outros da zona leste.

Na estação Bresser-Mooca do metrô, onde ambulantes, salões de beleza, igrejas e brechós estavam operando naquele dia de abril em que 4.195 pessoas morreram de Covid em todo o país, 21 mil pessoas realizaram o embarque por dia útil em fevereiro.

A região de Sapopemba foi uma das destacadas no ano passado em estudo do Instituto Pólis que concluiu que a Covid, na capital, se propaga mais onde os moradores dependem mais de transporte público.

A pesquisa foi elaborada em parceria com o Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade), vinculado à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP), e cruzou dados da SPTrans, da Pesquisa Origem Destino de 2017, da Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô de São Paulo), além de registros do DataSUS, vinculado ao Ministério da Saúde.

O mesmo problema ocorre em Capão Redondo, Cidade Ademar e Jardim Ângela (zona sul), Brasilândia e Cachoeirinha (zona norte), Cidade Tiradentes, Itaquera e Iguatemi (zona leste).

Os bairros com altos índices proporcionais de morte, porém, concentram-se na região central de São Paulo ou na zona leste. Além de Mooca, Bresser e Pari, Água Rasa aparece como recordista de óbitos por 100 mil habitantes. Na zona Norte, Brasilândia lidera os rankings da prefeitura.

Quem percorre as ruas de Sapopemba nota que boa parte da população utiliza máscaras nas grandes vias, o que se torna menos rigoroso nos corredores das favelas e nas ruas de baixa circulação. Havia bares abertos na noite de terça e durante o dia, na quarta.

Eram estabelecimentos que não deviam estar funcionando na fase emergencial decretada pelo estado, mas que dão sustento a famílias inteiras.

Dentro de um bar com cerca de dez metros de profundidade e três de largura, na noite de terça, havia um campeonato de bilhar, uma mesa com jogo de baralho e um homem na máquina caça-níquel. Só o atendente usava máscara.

A reportagem também identificou casas funcionando irregularmente na avenida Sapopemba, uma das mais extensas da cidade, e flyers de festas que aconteceram em janeiro, fevereiro e março no bairro.

Nesta primeira semana de abril, circulava nos celulares de jovens da região o flyer de uma festa programada para sexta (9) com endereço a ser confirmado apenas após os interessados entrarem em contato por mensagem privada.

Não é uma situação incomum. A reportagem identificou outros pontos de venda de bebida operando na madrugada de quarta. Por entre as grades de portões lacrados saem garrafas, maquininhas de cobrança ou o troco pelas bebidas alcoólicas.

Na manhã seguinte, após sair de uma das “quebradas”, uma mulher que preferiu não se identificar desceu a rua apontando para diversos conjuntos habitacionais. “Aqui morreram três”, disse no primeiro edifício. “Aqui mais dois”, disse no segundo. “Aqui mais três”, no terceiro.

Ela tocou o interfone em um deles, e logo veio conversar com a Folha um homem de estatura mediana e aparência jovial. Servente de obras, Kleber Dias de Souza, 36, o Careca, perdeu a mãe, a missionária evangélica Maria Dias de Souza, havia uma semana.

Ele disse que ela não descumpria o isolamento social, porém precisou levá-lo a um hospital público, em fevereiro, para uma endoscopia.

Juntos, eles pegaram um carro pelo aplicativo Uber e foram para o Hospital Vila Prudente. A desconfiança de Souza é de que sua mãe tenha contraído do coronavírus na unidade de saúde. “A sociedade precisa ajudar mais. Minha mãe estava isolada em casa”, afirma, embora também confirme ter sido menos rigoroso do que ela nas quarentenas.

“Falam que não pode ter aglomeração. Então pegue o ônibus de manhã para ir trabalhar. Tem gente que nunca entrou em um ônibus para ficar falando que não pode ter aglomeração”, diz Souza.

Um dia depois, o pedreiro entrou em contato com a reportagem e, aos prantos, manifestou tristeza e indignação. “Está duro demais para mim”, disse. Ele estava certo que a condição social lhe impusera a injustiça de perder uma mãe disciplinada no isolamento.

“Minha mãe orava pelos moradores aqui do bairro e promovia cultos por vídeo, no celular dela. Era uma mulher muito atenciosa com todos, e não estava saindo de casa”.

Na cerimônia de Vigília Pascal do dia 3 exibida pela Paróquia Imaculada Conceição, uma das mais conhecidas do bairro, em sua página no Facebook, há mais de 500 comentários, muitos homenageando mortos ou pedindo orações para quem contraiu o vírus.

As cerimônias online se tornaram realidade para uma comunidade com fortes traços cristãos, e que ora por seus mortos sem compreender ainda por que eles são tantos.

Circula nas redes, porém, o vídeo publicado em março de uma cantoria com tema evangélico, em frente ao Hospital Sapopemba. A homenagem causou aglomeração, ainda que com muitos mascarados.

No hospital, que atende população de todo o município, mas em especial a região leste, há 74 leitos para tratamento de Covid, sendo 30 de UTI e 44 de enfermaria. Todos estavam ocupados nesta sexta (9).

A atendente de uma mercearia na vizinhança levanta duas hipóteses para ter se contaminado.

“Pode ter sido no trabalho. Mas, dias antes de eu apresentar sintomas, meu namorado passou no meu serviço e fomos juntos para o hospital do Jardim Iva [na Vila Prudente]. Ficamos duas horas para fazer uma ficha. A sala de espera estava lotada, e não parava de chegar gente com sintomas de Covid. Gente sem máscara e com falta de ar. Tinha muita gente em uma sala pequena, sem o distanciamento social.”

Passando por vielas de uma favela e depois de descer uma imensa escadaria que leva a um terreno cheio de barro, casas de alvenaria com tijolos e fiações aparentes despontam como outros vetores de risco. Famílias como a de Maria Virgílio, 61, se aglomeram em casas de dois ou três cômodos.

Com ela vivem duas crianças, um homem e uma filha. Eles não fizeram testes para Covid e dizem que nenhum dos dos moradores ali apresentou sintomas até agora. Mas as condições impostas pelas restrições da fase emergencial, ao comércio e à circulação, agravaram a pobreza na vizinhança. Sem emprego, a fome é comum.

Renato Dias de Brito, conhecido como MC Piruk, 33, identificou que muitos de seus vizinhos estavam tendo dificuldade para comprar mantimentos e se juntou a amigos para pedir doações e fazer a distribuição do que arrecada pelo bairro. “Noto que muita gente nem fala que está passando necessidade. Muita gente tem vergonha de pedir ajuda.”

Seu novo trabalho consiste em publicar anúncios pedindo doações nas redes sociais e distribuir, com o próprio carro, os alimentos recebidos.

Brito e a namorada pegaram Covid recentemente, o que ele atribui à necessidade de trabalhar. A namorada usa transporte público diariamente até o emprego, em Santana. São duas baldeações e um ônibus.

“Se tiver que parar transporte público, teriam que parar o serviço, senão quem tem emprego vai arrumar um jeito de chegar”, pondera.

“Se as kombis voltarem”, diz, citando o transporte clandestino, “daí aglomeram ainda mais”

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