Mortes: Melhor amigo da onça-pintada do Brasil, biólogo morre em decorrência da Covid-19

Peter Crawshaw Jr. passava dias em expedições na Amazônia, no Pantanal e na Mata Atlântica

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Manaus

Pioneiro no estudo de grandes felinos no Brasil, formador de gerações de pesquisadores e idealizador de diversos programas de conservação, o biólogo Peter Crawshaw Jr. morreu neste domingo (25), após 44 anos dedicados à onça-pintada. Ele é mais uma vítima da epidemia da Covid-19 no país.

Biólogo Peter Crawshaw Jr. com uma onça-pintada anestesiada, no Pantanal de Corumbá (MS) - Arquivo Pessoal

“O Peter foi um mentor para muitos e um amigo querido”, diz Sandra Cavalcanti, que, 31 anos atrás, se tornou a sua primeira assistente de campo, no Parque Nacional do Iguaçu (PR). “Ele sempre se considerou mais um pesquisador de campo do que um acadêmico. Era muito especial, inspirava a gente.

Um dos motivos pelos quais ele deixou um legado tão grande foi a disposição que tinha para receber estudantes, para os quais não só repassava seus conhecimentos como também dividia suas experiências.”

Ele aprendeu sobre a importância de combinar trabalho de ponta com formação de pesquisadores logo na sua primeira experiência de campo, em 1977. Ainda na faculdade, Crawshaw escreveu uma carta ao lendário pesquisador norte-americano George Schaller, voluntariando-se a acompanhá-lo no Pantanal para o primeiro estudo da onça-pintada no Brasil.

Pegando até carona de avião, o estudante da Unisinos viajou do Rio Grande do Sul à fazenda Acurizal (MS), onde viu a estreia do uso em pesquisa da técnica da radiotelemetria, que consiste na captura de animais para a colocação de colares de rastreamento. De quebra, iniciou uma amizade de décadas com Schaller.

“O Brasil perdeu um excelente biólogo e conservacionista, e as onças foram privadas de um amigo verdadeiro e dedicado”, escreveu Schaller, o biólogo de campo mais reconhecido do mundo, a um amigo em comum.

Nas próximas décadas, Crawshaw calculou ter implantado colares em cerca de cem onças-pintadas e onças-pardas. Foi assim que estudou dieta, hábitos de reprodução e deslocamento, informações essenciais para a criação de planos de conservação ou de manejo dos grandes felinos, cujo habitat encolhe ano a ano.

Como funcionário público, o biólogo acompanhou as mudanças do sistema de proteção ambiental no Brasil. Trabalhou no extinto IBDF (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal), no seu sucessor, o Ibama, e finalmente, no ICMBio. Entre outros projetos, foi um dos fundadores do Cenap (Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Mamíferos Carnívoros).

Em todas as iniciativas, Crawshaw se preocupava em formar pesquisadores, afirma o biólogo Fernando Tortato, pesquisador da ONG Panthera. “O Peter me trouxe para o mundo das onças-pintadas quando, em 2008, me convidou para trabalhar em um projeto no Pantanal. Foi um constante aprendizado. Ele era apaixonado pelas onças e pelo Pantanal e sempre tinha uma experiência para compartilhar.”

Em campo, o biólogo passava dias a fio em expedições na Amazônia, no Pantanal e na Mata Atlântica.

Entre as aventuras, escapou de um ataque de uma onça-pintada quando trabalhava no Parque do Iguaçu. Mais tarde, ela ganharia o nome de CG (curta e grossa).

“Estávamos tentando capturar esse onça já fazia dias, e ela sempre nos dava um balão, desarmava as trampas, roubava as iscas e não ficava presa”, conta Cavalcanti.

Nos dias seguintes, eles passaram a usar uma armadilha de gaiola, até que finalmente conseguiram prendê-la. No momento em que faziam a anestesia, em uma trilha do parque fechada a visitantes, apareceram dois turistas estrangeiros. Como os pesquisadores, acompanhados naquele dia pelo pai de Crawshaw, já estavam no meio do procedimento, o casal de intrusos acabou autorizado a assistir de longe.

Pouco depois, Cavalcanti deixou o local para averiguar as armadilhas em outro local. De lá, ela contatou Crawshaw via rádio. Enquanto os dois conversavam, a turista se aproximou da onça, já quase completamente desperta, para tirar uma foto. O flash irritou o animal, que começou a andar na direção dela. O biólogo largou o rádio e puxou a turista.

“A onça então veio na direção do Peter, que foi auxiliado por seu pai. ‘Seu’ Peter a segurou pelo rabo, fazendo com que ela se virasse e tirasse sua atenção do Peter. Nesse momento, Peter literalmente cutucou a onça com a vara curta, usando um bastão para injetar os dardos à distância, fazendo novamente com que ela se virasse.”

Pai, filho e os turistas conseguiram entrar no carro e fechar a porta, enquanto a onça a trombava contra a lataria. Ao final, houve apenas ferimentos leves.

“Esse episódio relembra o quão guerreiro foi o Peter, que sobreviveu também a uma queda de ultraleve, a um sequestro na Bolívia, a um acidente de barco no Pantanal e a tantas outras aventuras. Pelas minhas contas, ainda não tinha gasto todas as sete vidas. Mas, como ele mesmo dizia: “'Quem viveu a vida como vivi não tem medo de morrer'”, diz a pesquisadora do Instituto Pró-Carnívoros, que o amigo ajudou a criar.

Crawshaw, 69, morava em Torres (RS), onde finalizava um livro sobre sua experiência de vida e de pesquisa entre as onças. Deixa a companheira, Margarete, e os filhos Danielle, Beatriz e David.

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