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'Desde quando estupro é fetiche?', diz jovem que denunciou Saul Klein

Tatiane é uma das 14 moças que se apresentaram ao Ministério Público como vítimas de violência sexual por parte do herdeiro do fundador das Casas Bahia; acusado diz que sexo foi consentido

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São Paulo

Dos 20 aos 25 anos, Tatiane (nome fictício) foi frequentadora do sítio do Zinho, misto de spa e clube em Boituva (a 117 km de São Paulo) onde o empresário Saul Klein recebia cerca de 2.000 jovens por ano. Ele chegava a desembolsar R$ 260 mil em fins de semana de prazeres, embalados por sexo, bebida e belas meninas.

Algumas delas seriam menores, conforme denúncias de 14 delas ao Ministério Público de São Paulo. As acusações deram origem a um inquérito em andamento, sob segredo de Justiça, na Delegacia da Mulher de Barueri. A seguir, o relato da jovem de 28 anos que se diz sobrevivente de um esquema sofisticado de aliciamento, dependência e abusos físicos e psicológicos.

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Tatiane (nome fictício), uma das 14 moças que se apresentaram ao Ministério Público como vítimas de aliciamento e violência sexual por parte do herdeiro das Casas Bahia; acusado diz que sexo foi consentido - Mathilde Missioneiro/Folhapress

​Toda menina tem vontade de ser modelo. Fiz trabalhos e participei de concursos na adolescência. Com 15 anos me desiludi.

Terminei o ensino médio, comecei a fazer cursos e arrumei um estágio voltado para a moda. Fazia muita prova em modelos. Uma delas me disse que eu tinha o perfil 'modelete' e tinha um trabalho pra mim.

Ela tinha 16 anos quando me chamou para o esquema do Saul Klein. Eu, uns 20. Demorei a entrar em contato. Perguntaram minha idade, altura, peso, como se fosse um trabalho normal. Tenho 1,67 m, 50 kg, olhos claros.

Fui até o flat em Alphaville, perto da mansão do Saul. Vesti biquíni, fizeram umas polaroides. Saí pra uma panfletagem. Quando voltei depois de meia hora, a Vera [acusada de aliciamento] disse que eu não tinha passado no teste. Falou que tinha outro trabalho que era o meu perfil, mas que eu precisava conhecer o dono da agência.

A menina que tinha ido panfletar comigo, a Puca [acusada de aliciamento], falou que ele dava muitas festas e a gente ficava lá para fazer número. Ia ganhar R$ 500. Em nenhum momento falaram que ia rolar sexo.

Mandaram a minha foto para Marta [Gomes da Silva, dona da agência Avlis, contratada por Saul para fazer os eventos e pré-selecionar as jovens, acusada de aliciamento]. Passei no critério dele.

Tinha ido de All Star e calça. Elas me arrumaram lá mesmo. Quem me vestiu foi a Marta, e depois me levaram pra mansão.

Lá estava também a Ana Banana [Ana Paula Fogo, coordenadora dos eventos no sítio, que também denuncia Saul]. Elas me pediram para falar com voz de menininha e disseram que talvez ele fosse querer ficar comigo. Quando eu disse que não era o combinado, Puca respondeu: ‘Fica tranquila, amiga. Fico com ele direto. Se você passar, a gente vai pra um spa’. Como era uma coisa que nunca tive, eu concordei em conversar com ele.

Fomos para uma sala, ao lado do quarto do Saul. Em cima de um puff tinha um monte de biquíni. Puca disse que eu podia escolher qualquer um. Nessa hora, a Deia [espécie de governanta, também acusada de aliciamento] já puxou meu vestido pra cima. Como dei uma estressada, a Ana falou pra eu ir me trocar no banheiro.

Saul já tinha entrado. Foi educado, simpático. Deia e Puca sumiram e ele já foi pelado me buscar no banheiro. Fiquei sem reação [começa a chorar]. Estou com acompanhamento psicológico. Por reviver essas histórias, acabei desenvolvendo trauma. Numa entrevista para TV, fiquei tonta, precisei parar.

Saul me levou para o quarto dele. A cama era bem alta. Já me virou de uma forma que me prendeu de bruços e não tinha o que fazer. Mesmo pedindo pra parar, ele não para.

Quando se diz que todas foram estupradas, foi nesse momento do teste. Tem casos de a menina ir direto para o spa, mas a maioria passou por isso que passei na mansão.

Ele passou um lubrificante e disse que era preservativo em gel. Eu não era virgem, mas foi sexo não consentido. Nunca tinha feito sexo anal. Ele viu que sangrou, mas disse que era normal.

Óbvio que aquilo foi um estupro. Eu não tive reação. Ele falava: ‘Calma, é carinho’. Ele me tratava como uma criança. Teve menina que entrou no teste segurando boneca.

Voltei tarde para o flat e fiquei lá até quinta, quando fomos para o spa. Puca, no papel de amiga, disse: ‘Ele amou você’, fazendo parecer que eu tinha ganhado na loteria. Não me deixavam ir pra casa, com medo de eu não voltar. Já não morava mais com meus pais. Compraram roupa, sapato.

No sítio, tinha umas 30 meninas. Uma mais linda que a outra. Aquilo tudo parecia tão normal pra elas. Pensei: ‘Por que eu tô fazendo tanto drama? Olha ali aquela famosinha!’ Já passaram pelo sítio do Zinho [como Saul pedia para as meninas contratadas o chamar] influenciadoras, cantora de funk e até meninas que viraram top model e apresentadoras de TV.

Achei que podia estar exagerando. Passei pela ginecologista. Era obrigatório, mas do que adianta passar na ginecologista depois de ter sido estuprada?

No estágio, eu ganhava R$ 600 por mês. Ganhei R$ 4.000 naquela semana. Pensei: ‘Nossa, tô rica’. É muito falso isso. Você ganha, mas gasta pra compensar.

Voltar a transar com ele foi um problemão. Marta ficava dizendo: ‘Essa é a ouro da semana’. Toda a atenção estava em mim.

Quando chega uma menina nova, tem que estar perfeita. Se for bronzeada, tem que passar talco no corpo pra ficar branca. Saul não gosta de preta. É racista, homofóbico, gordofóbico. Ficava de biquíni e de salto, com ar-condicionado sempre gelado. Se treme ou boceja, ele mandava dar bebida para deixar você mais solta, animada.

Fui escolhida para dormir com ele junto com uma menina mais velha. Aquilo pra mim não era prostituição. Nunca planejei: ‘Vou ali fazer sexo por dinheiro’.

Eu demorei um tempo pra voltar. Eles vão aumentando as ofertas. ‘Você não quer ganhar um carro? Pago tua faculdade’.

O pesadelo estava no começo. As preferidas são chamadas para cuidar dele. Virei cuidadora. Quando falam que fulana ficou dois meses sem sair de lá é real. Trancada. Cuidando mesmo: dar remedinho, pegar cueca, tirar meia, ajudar no banho.

Saul Klein em evento em 2012 - Leticia Moreira/Folhapress

Ele só sai da cama para a putaria, enquanto você não pode sair do quarto nem para usar o telefone. Fica disponível 24 horas. Você não dorme, tem de fazer massagem nele.

As unhas dele são grandes, pontudas. Uma das menores que também está denunciado ele saiu de lá com hemorragia. Fez laudo com ginecologista de fora. A de lá disse que estava tudo bem.

As orgias eram um verdadeiro evento. Com palco, bufê, músicos, dançarinos, shows. As festas no Ano-Novo e no Carnaval, que é junto com o aniversário dele, eram gigantes. Vão umas 45 meninas ou mais.

Todo mundo sabia quem era menor ali. No Dia da Criança era festa real. Tinha brinquedo, pirulito, era tudo bem infantilizado.

Saul Klein é um pedófilo. Uma vez estávamos vendo um filme e ele ficava voltando o tempo topo numa cena de estupro envolvendo criança. É um pervertido, que se acha o poderoso, manda em todo mundo. Compra todo mundo.

São todos submissos. A casa é rodeada de seguranças. Ana e Marta são paus-mandados. Ganharam muito dinheiro. Ele é o patrão, participa de tudo. Ana pode até ter sido vítima em algum momento, mas ela fez parte do esquema maior. Era uma carrasca com as meninas.

Já ele mantinha a pose de príncipe, mas no sexo era violento. Vi ele agredir uma menina no primeiro dia. Ela se recusou a pagar uma prendinha, que era ficar com outras ali na frente de todo mundo. Ele começou a gritar, falando que o peito dela tava caído: ‘Você dá de mamar, já é mãe’.

Depois, ele foi bater no quarto das novinhas e tirou ela da cama, xingando de todas as formas. Deixou ela toda roxa. A gente teve que esconder a menina em um dos chalés do sítio.

Ana falou que tinha mandado ela embora, só que os seguranças não deixaram. Ela dizia que ia ligar pra polícia. Pegaram o celular dela e esconderam. Um dos seguranças disse: ‘Se ela fizer um boletim de ocorrência, eu vou perder minha carreira por causa de uma vagabunda’.

Denunciar foi bem complicado. Quando estava lá dentro, tinha essa mobilização da M., da L., [duas moças que fizeram acordo extrajudicial com Saul em 2019]. É tudo com medo.

Muitas tentaram denunciar e ele sempre dava um jeito. Só consegui pela força de todas juntas e principalmente pelo que aconteceu com a Capricho [jovem de 22 anos que cometeu suicídio em 2020]. Uma teve coragem de fazer, foi até o fim. Muitas já tentaram [se matar].

Era um menina como todas nós [chora]. As pessoas perguntam: como vocês viram tudo isso e ficavam lá dentro? Nós éramos, até certo ponto, unidas. Uma dava força para a outra. Se a gente tivesse feito isso [denunciar] um pouquinho antes, ela estaria aqui.

Capricho era do Sul. Ficava meses trancada com Saul. Ele dava um remédio para ela dormir, mas quando é misturado com bebida deixa a pessoa transtornada. É o que ele faz.

Capricho ficou muito deprimida. Era uma dançarina de dança do ventre. Saudável, não estava acima do peso, mas Saul falava que ela estava gorda, que tinha de tirar a bochecha do Fofão. Era o biótipo dela.

Ele jogava com a autoestima nossa, assim como a Ana. Ela humilhava, falava da aparência, que tal menina estava com barriga, culote, flácida. Eu cheguei a pesar 39 kg. E ela falando que eu tava gorda.

Pararam de me chamar depois que tive uma discussão feia com a Puca, quando a clamídia pegou forte lá dentro. ‘Amiga, com quem você ficou para ter pegado e passado pra todo mundo?’, ela me perguntou. Ele conhece não sei quantas meninas por mês, transa sem caminha. Eu questionei: “E ele?”.

Também tive HPV. Ele não se cuidava, ficava dias sem tomar banho. Era nojento.

Muitas meninas ainda tomam antidepressivo. O que me segurou foi ter contado pra minha mãe. ‘Olha, eu tô saindo com um cara, dono das Casas Bahias. Tem também não sei quantas meninas’. Dei uma maquiada. Quando fui contando mais e todas as meninas se reuniram, foi um choque grande pra ela. ‘Como não vi isso acontecer com a minha filha?’

Foi minha mãe que falou pra eu denunciar. Ela me fez prometer que eu nunca mais ia voltar lá. Meu pai sabe por alto. Eu ajudei minha família, teve um momento que eles dependiam de mim. Minha mãe é faxineira. Tenho cinco irmãos.

Saul sabe da vida de todo mundo que está lá. Teve um momento que eles queriam que eu levasse alguém. Deia chegou a oferecer R$ 50 mil para eu levar minha irmã deficiente, com 15 anos na época, negra, gordinha. ‘Traz, só pra fazer graça’. Como se minha irmã fosse uma palhaça.

Eu tenho acompanhamento psicológico. São coisas que a gente tem que mexer para cicatrizar. É muito dolorido. Tenho namorado, mas não contei nada pra ele. Acaba afetando o relacionamento. Arrumar emprego é complicado. Como explicar todos esses anos sem trabalho? Há dois meses estou num escritório como secretária. Ganho R$ 1.800 por mês.

Vão tentar tirar a culpa dele e jogar na menina, dizendo que foi lá porque queria. E falar em "sugar daddy" é ridículo. Desde quando estupro é fetiche? Não pode ser, pelo amor de Deus.

No Brasil, poderoso não vai preso, não paga nada. Parece que isso está se provando. Nada aconteceu com Saul. Ele comprou o silêncio da A. [menina de 16 anos, que registrou Boletim de Ocorrência junto com a mãe e depois retirou a queixa crime]. Não vou julgar, não sei o motivo dela. Tenho certeza de que isso não vai trazer paz pra ela.

Comigo eles até tentaram quando caiu a medida protetiva [Saul foi proibido de manter contato com as denunciantes; a medida foi revogada em fevereiro]. Meu silêncio não está à venda. Quero que ele vá pra cadeia. E não só ele. Que essa cultura de estupro da família acabe.​

Outro lado

André Boiani e Azevedo, advogado de Saul Klein, diz que Tatiane é uma das pessoas que falam coisas que estão sendo desmentidas no inquérito. “Nunca aconteceu nada relativo a estupro nem sexo sem consentimento. Ela mesma traz informações a respeito da postura da dona da agência e de seus funcionários que não eram do conhecimento do Saul.”

Segundo o criminalista, a existência de imagens e vídeos dela e de outras meninas nas festas beneficia o empresário. “Mostram as moças rindo, ele cantando. Elas não estão subjugadas nem constrangidas. É o oposto do que falam. Ele nunca quis que esse estilo de vida fosse público, mas as imagens não são prova de crimes.”

Com relação ao suicídio da jovem conhecida por Capricho, Azevedo diz que Saul lamenta a morte. “Ele tem plena tranquilidade de que não contribuiu em hipótese nenhuma para isso. O inquérito vem comprovando essa convicção.”

Procurados pela Folha, os advogados da Marta e demais funcionários dizem que nem eles nem os clientes irão se manifestar nesse momento. A dona da agência Avlis ainda será convocada a depor.

Ana Paula Fogo também não quis dar entrevista. “Por orientação do meu psiquiatra estou afastada de qualquer atividade relativa a esse assunto", respondeu pelo WhatsApp.

Eduardo Querobim, um dos promotores de Justiça de Barueri que acompanham as investigações, não fornece informações sobre o caso. O inquérito corre em segredo de Justiça e está em fase de coleta de depoimento das vítimas e acusados.​

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