Impacto da pornografia é imenso no abuso sexual, diz antropóloga

Para Astrid Bant, gerações de homens crescem com a ideia distorcida de que o corpo da mulher está sempre disponível

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Bruxelas

O impacto da pornografia no abuso sexual e na desigualdade de gênero é imenso e subestimado, afirma Astrid Bant, representante no Brasil do UNFPA (Fundo de População das Nações Unidas).

“Sem ser moralista, a gravidade da pornografia é desconhecida. Está criando geração de homens que crescem com a ideia de que o corpo da mulher está sempre disponível.”

Antropóloga, socióloga e psicóloga, ela trabalha há mais de 30 anos em programas de desenvolvimento em países como Peru, Bolívia, Brasil, Holanda, Estados Unidos, Moçambique e Vietnã.

Em entrevista por videoconferência na qual comentou o recém-lançado relatório “Meu Corpo Me Pertence”, que detalha a autonomia física da mulher ao redor do mundo, ela falou também de sexualização precoce, gravidez na adolescência e do impacto de governos conservadores no combate à desigualdade entre homens e mulheres.

Moça de tranças sorri e conversa com mulher de cabelos brancos presos em coque e moça de cabelos escuros presos em coque, ambas com um colete branco com o distintivo do fundo da ONU
Astrid Bant (centro), em foto tirada antes da pandemia, durante missão humanitária em Manaus (AM), conversa com Débora Rodrigues (dir.), também do UNFPA, e com migrante venezuelana - Divulgação - 2019/Unfpa Brasil

“Não se retrocede completamente. Mulheres conservadoras também querem casamentos sem violência, também querem se realizar. Às vezes aparece um líder mais radical, mas, por trás dele, há uma quantidade de mudanças culturais e de expectativas das pessoas sobre o que é felicidade que se sustenta, não desaparece.”

Essa é a terceira vez que a sra. está no Brasil, desta vez há quase dois anos. Que retrato faz da situação atual das mulheres e meninas do país? Isso é um pouco simplificador.

De fato, mas sua experiência em diversos países e diferentes momentos do Brasil ajuda a resumir. Diria que, legislativamente, o Brasil é um exemplo, com a Lei Maria da Penha, que enquadra formalmente a violência contra mulheres. Informalmente, também vejo a participação do pai na família e na criação dos filhos avançando.

As mulheres estão no ensino terciário e no mercado de trabalho, embora ainda tenham desafios trágicos. Estatísticas mostram que as meninas além de ir à escola fazem os trabalhos domésticos e depois fazem a lição de casa. Ainda assim, estão em melhor situação que os garotos de baixa renda, porque encontram trabalho, ainda que precário. Eles não acham nenhum emprego.

O Brasil é um país que caminha na direção da igualdade de gênero. Nos últimos anos essas políticas não têm sido tão pronunciadas, mas vinha dando mais acesso a serviços de saúde sexual e reprodutiva. O problema é que, quando se consegue igualar um aspecto, a desigualdade ressurge em outro lugar.

Como assim? Nunca estive num lugar em que houvesse tanta pressão para que a mulher seja bonita. Todas as cirurgias plásticas, os trabalhos de corpo. Os avanços de um lado são corroídos pela visão da mulher como um ser que precisa dar prazer aos homens.

Essa pressão para que a mulher seja bonita torna a sexualização das meninas mais precoce? Explica a taxa tão alta de gravidez na adolescência? Vejo acontecendo mais com as mulheres mais velhas essa pressão de continuar bonita mesmo quando envelhecem. Mesmo mulheres que já têm carreiras consolidadas sentem a necessidade de fazer cirurgias. Mas de fato a sexualização das mulheres no Brasil é robusta, quando comparada com outras culturas. Chama a atenção.

O que explica então o alto nível de gravidez adolescente no Brasil? Há dois motivos. Vivi muitos anos em locais com populações amazônicas, no Brasil e no Peru. Dizemos às meninas de 15 anos “não se casem muito cedo porque vai atrapalhar seu estudo, sua carreira”, mas não há nada disso sendo oferecido a elas. Não há trabalho, as escolas são péssimas. Com a ausência de perspectivas, o casamento é visto como a melhor solução até pelos pais das meninas, porque, pensam eles, é melhor que ela engravide casada que solteira.

Nas populações mais urbanas, não se trata de forma adequada a sexualidade nem na escola nem em qualquer lugar. Claro que as jovens sabem que o sexo engravida, mas muitas não sabem como dizer não ou onde conseguir serviços que lhes permitam manter a autonomia de seus corpos. Esse fortalecimento das meninas não depende só de informação, é algo que precisa ser construído. A educação tem um papel enorme.

A sra. falou em um hiato no avanço brasileiro nos últimos anos, e o governo Bolsonaro é explícito contra a pauta mais progressista nos costumes. Os ativistas conseguiram manter o trabalho apesar do governo? Não vou criticar o governo, porque não é meu papel. Mas o que posso dizer é que muitos dos avanços em igualdade de gênero se devem a movimentos de mulheres. O conflito com a política governista é algo que precisa ser discutido na sociedade.

Mas quando o governo acolhe esses movimentos e essas pautas, como vinha fazendo nos últimos 30 anos, e os ajuda a avançar, há um progresso sustentável. No Brasil, isso importou imensamente, porque os atores da sociedade precisam tomar decisões, mudar leis, alocar orçamentos, dar exemplos. Quando o governo para de fazer isso, a vida dos ativistas fica difícil, e os avanços podem até perder-se.
O papel do governo é muito importante e felizmente no Brasil eles apoiaram esse tema.

E a oposição do governo Bolsonaro provocou uma interrupção ou um retrocesso? Não quero dizer que se perdeu tudo, mas o governo atual tem tomado posições que dificultam avançar na igualdade de gênero. Alguns pontos são bem sensíveis, mas a pauta não está destruída. Basta ver o que ocorreu nos EUA, que foi muito conservador e agora está voltando, inclusive a financiar as ações do UNFPA.

O movimento em direção ao fortalecimento das mulheres e à igualdade de gênero é impossível de parar. Até porque mesmo os conservadores são hoje menos conservadores que antes. Não se retrocede completamente. Mulheres conservadoras também querem casamentos sem violência, por exemplo, também querem se realizar. Às vezes aparece um líder mais radical, mas, por trás dele, há uma quantidade de mudanças culturais e de expectativas das pessoas sobre o que é felicidade que se sustenta, não desaparece.

O relatório mostra que mesmo num casamento consensual a mulher está sujeita a violência sexual, ela é forçada ao sexo. A coerção sexual muitas vezes começa já nos namoros. Para casais há muito tempo nessa situação, é muito difícil mudar, a não ser quando descamba em violência. Uma vez que os homens têm esse privilégio de exigir sexo quando querem, é muito difícil fazê-los abrir mão desse poder.

O caminho ideal é criar uma geração em que o namoro tenha uma relação horizontal entre os dois.

Felizmente mais e mais homens estão interessados nisso, e isso se traduz em uma geração de jovens que criam seus filhos assim.

Por outro lado, a pornografia está criando uma geração de homens que crescem com a ideia de que o corpo da mulher está sempre disponível.

Sem ser moralista, a influência do pornô é imensa e sua gravidade é desconhecida. Metade do fluxo na internet hoje é de pornografia, e pesquisas mostram que crianças entre 10 e 15 anos têm sua noção de sexo moldada por ela. Ela pode ser muitas coisas, mas geralmente é moldada para homens e mostra mulheres submissas.

É algo que precisa ser desconstruído entre os jovens, mostrar que o que os homens estão vendo não é a realidade, que as mulheres de verdade não são assim, não estão sempre disponíveis, que elas têm desejos próprios, sentimentos e poder sobre seus corpos.

É correto concluir que não se avança se não houver mudança também entre os homens? Este é um gargalo muito difícil, porque os homens, e até crianças, estão sendo formados pela pornografia. Fala-se muito que a nova geração precisa ser treinada para reconhecer fake news, mas a pornografia cai nesse escaninho. As crianças precisam saber que o que veem na internet nem sempre é caminho para construir vidas felizes.

O relatório do UNFPA diz que a autonomia sobre o corpo permite à mulher ter mais poder sobre outras áreas de sua vida. Não seria no sentido inverso? Quanto mais poder na economia e política, mais autonomia garante sobre seu corpo? Vai nas duas direções. Certamente uma mulher hiperpobre não terá autonomia sobre seu corpo, mas, na sexualidade, mesmo mulheres de mais renda não têm autonomia.

Claro que autonomia física, econômica, política e de educação precisam andar juntas. Há lugares em que mulheres não têm atuação política porque maridos não as autorizam a sair quando querem ou a viajar. É a falta de autonomia física impedindo o avanço em outras esferas.

Como é possível que até hoje estupradores escapem de punição casando-se com suas vítimas? Cada país tem seu contexto. O Brasil, por exemplo, só aboliu lei semelhante em 2005, mas isso não quer dizer que fosse usada em 2004. Era um resíduo da história colonial, de uma regra comum na Europa nos anos 1800. Em outros países, tais leis têm papel ativo na cultura.

Onde ainda estão vivas? Há uma falsa percepção de que são apenas países muçulmanos, mas nesse pacote há de tudo, com diferentes histórias. O exemplo do relatório é de uma adolescente do Marrocos que, forçada a esposar seu agressor, acabou se suicidando. Fala-se muito de uma “cura” por lei do estupro, mas há situações em que a lei quer proteger a dignidade da mulher. Por exemplo em casais jovens, em que o sexo não foi nem obrigado nem violento, mas ela é pega em flagrante ou grávida e se faz essa opção. Mas, seja qual for a história e o efeito, essas referências não devem estar em nenhum corpo de lei.

Faz alguma diferença, no caso em que a lei já não era usada? Sim, é sumamente importante. A lei é uma formalização de como as pessoas pensam, e essas leis reforçam a falta de autonomia da mulher sobre seu corpo. Assim como em assuntos como casamento infantil, estupro marital, mutilação genital feminina, é importante quando a lei os proíbe explicitamente. As mudanças de comportamento não são de uma hora para a outra, mas, quando as leis existem, cria-se a oportunidade de ir à Justiça para exigir esses comportamentos.

Não há dados brasileiros em vários capítulos do novo relatório do Unfpa. Faltam estatísticas no Brasil? O Brasil não tem bons dados sobre violência contra a mulher. Há informações, mas não suficientes para analisar de forma estatística o efeito de leis ou intervenções. No Vietnã, por exemplo, a cada dez anos um censo investiga esse tema. É muito importante inclusive para deixar claro como é difícil mudar. Em dez anos a redução de práticas de desigualdade de gênero muda muito pouco. Mudam mais entre os mais jovens, mas nas situações abusivas já consolidadas, não.


Raio-x

Astrid Banta é representante do Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) no Brasil. Antropóloga, socióloga e psicóloga, é formada pela Universidade de Amsterdã e pela NSRR (The New School for Social Research, EUA). Trabalha há mais de 30 anos na implementação e coordenação de programas de desenvolvimento em países como Holanda, Estados Unidos, Peru, Bolívia, Moçambique e Vietnã, além do Brasil.

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