Progresso judicial em casos de abuso infantil esbarra na desarticulação de municípios

Desafio é criar fluxo que poupe a vítima de ter que reviver a violência sofrida

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Philippe Scerb
São Paulo

O sofrimento desencadeado pela violência sexual não se encerra no momento em que o caso é denunciado. Ao contrário, ele pode aumentar à medida que a vítima é obrigada a perambular por instituições contando e recontando a violência sofrida. É o que os especialistas chamam de revitimização.

Nos últimos anos, o Judiciário avançou na proteção ao implementar o depoimento especial, no qual a criança ou adolescente é ouvida apenas uma vez, fora da sala de audiência e sem contato com o agressor. Recomendada pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça) desde 2010, a mudança virou lei federal em 2017.

O depoimento especial é colhido por profissional capacitado, em sala separada e com presença exclusiva da vítima. A entrevista é gravada e transmitida em tempo real à sala de audiência. As perguntas do juiz, promotor e do defensor do acusado são mediadas pelo entrevistador e adequadas ao protocolo brasileiro de entrevista forense, que restringe questões indutivas e constrangedoras.

Esse progresso no âmbito judicial, contudo, esbarra na desarticulação das redes municipais de serviço. Embora a lei federal determine também a coordenação das instituições responsáveis pela chamada escuta especializada, pouco foi feito para articular órgãos como conselhos tutelares e sistemas de saúde, educação e assistência social.

A escuta especializada requer uma definição precisa do papel de cada órgão da rede pública, afirma Itamar Gonçalves, da ONG Childhood Brasil. “Não é papel dos serviços investigar, não cabe produção de provas no sistema de saúde, não cabe investigação no Conselho Tutelar.”

Mas é o que acaba ocorrendo, diz a entrevistadora forense Rochelli Trigueiro. Coordenadora de capacitação dos profissionais responsáveis pelo depoimento especial no TJ do Ceará, ela afirma que, por boa vontade e/ou falta de formação adequada, os profissionais da rede de serviços extrapolam suas atribuições.

“A criança relata a violência sofrida com todos os detalhes em lugares nos quais o objetivo não é esmiuçar a violência em si. Diversas vezes nos deparamos com crianças que dizem ‘ai, tia, vou ter que falar isso de novo? Já falei para a tia do conselho, para o médico no posto, na escola’.”

A primeira experiência brasileira de depoimento especial se deu no Rio Grande do Sul, por iniciativa do hoje desembargador José Antônio Daltoé Cezar. Na falta de um protocolo específico para vítimas de abuso sexual, o então juiz da Infância e Juventude em Porto Alegre passou a adotar câmeras de segurança. O TJ gaúcho expandiu a prática para outras dez comarcas do estado já em 2004.

A implementação do depoimento especial ainda é deficiente em alguns estados, mas houve avanços nacionais, segundo pesquisa de 2018 coordenada pelo professor Antonio Jorge Pereira Jr., da Universidade de Fortaleza.

A situação é melhor em lugares onde, à imagem do Rio Grande do Sul, a prática é anterior à entrada em vigor da lei. Em São Paulo, um projeto piloto foi inaugurado em 2011 em quatro comarcas, dentre as quais a de São Caetano, do juiz Eduardo Rezende Melo, da coordenadoria da Infância e da Juventude do TJ-SP.
Segundo o juiz, todas as comarcas estaduais aderiram à iniciativa, mais de 1.700 técnicos foram capacitados e os magistrados, formados.

Ainda persistem obstáculos à disseminação e à qualidade do depoimento especial. Pereira Júnior lamenta a falta de estrutura em determinadas comarcas, o que obriga as vítimas a se deslocarem para outras cidades e prejudica seu direito à privacidade em municípios pequenos. Daltoé Cezar critica o despreparo de magistrados que resistem a estudar e adotar um protocolo mais exigente em termos de tempo e dedicação.

Por outro lado, o depoimento especial protege também os direitos dos acusados. Para Melo, o protocolo de entrevistas impede que investigadores induzam a vítima a relatar algo que eventualmente não aconteceu. O depoimento especial, diz ele, não tem vocação punitivista e garante uma Justiça de qualidade.

Quanto à rede de serviços voltados à proteção, o caminho parece mais árduo, mas alguns avanços pontuais podem ser vistos. Em Vitória da Conquista (BA), há um Centro Integrado da Criança e do Adolescente com Vara da Infância e da Juventude, unidades da Promotoria, da Defensoria Pública e do Conselho Tutelar, dois Creas (Centro de Referência Especializado de Assistência Social) e um núcleo da Polícia Civil. Está prevista para julho a inauguração de um complexo para integrar todos os órgãos responsáveis envolvidos.

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