Descrição de chapéu Folhajus Rio de Janeiro

Documentos indicam falhas na localização de corpos no Jacarezinho

Problemas se referem aos lugares em que ocorreram pelo menos três homicídios

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Rio de Janeiro

Quatro policiais que participaram da operação do Jacarezinho em maio, a mais letal da história do Rio de Janeiro, afirmam ter ocorrido falha na identificação do local de mortes de ao menos 2 das 27 vítimas civis.

Os depoimentos dos agentes, obtidos pela Folha, mostram que eles declararam à Divisão de Homicídios, quase um mês após a operação, que os registros de ocorrência trocaram o local da morte de Raí Barreiros de Araújo, 18, e Luiz Augusto Oliveira de Faria, 41.

A Folha também identificou divergências nos documentos sobre a morte de Carlos Ivan da Costa Jr, 32. Os papéis e depoimentos do inquérito policial apresentam contradições tanto sobre o hospital para onde o corpo foi enviado quanto sobre as lesões provocadas pelos disparos dos policiais.

Dois policiais com coletes à prova de balas preto carregam um corpo escondido dentro de um lençol
Policiais retiram corpo de local de suposto confronto na operação do Jacarezinho, em maio, a mais letal da história do Rio de Janeiro - Ricardo Moraes - 06.mai.2021/Reuters

Procurada, a Polícia Civil afirmou que o erro ocorreu porque os policiais envolvidos nos confrontos não foram os mesmos que efetuaram o socorro.

"No local de confronto não era possível fazer a identificação de cada baleado, visto que a área não foi estabilizada", diz a nota do órgão.

As 27 mortes de civis ocorreram em 12 pontos distintos da favela ao longo de cinco horas de tiroteio.

Cada suposto confronto gerou um boletim de ocorrência e, posteriormente, um inquérito policial. Nem todas as vítimas estavam identificadas no momento do registro na delegacia. Os nomes dos mortos foram confirmados pela primeira vez pelo IML (Instituto Médico Legal).

Aparentemente um erro prosaico numa operação com 28 mortes, a troca de locais dos corpos altera de forma significativa a análise da trajetória dos tiros disparados e a comparação com depoimentos sobre a dinâmica dos fatos.

As investigações sobre as mortes provocadas por policiais têm como objetivo reconstituir em detalhes as cenas dos homicídios para saber se os agentes atuaram ou não em legítima defesa, como afirmam.

Em seus depoimentos, eles descreveram confrontos ou situações em que foram ameaçados com armas.

A apuração deve comparar os relatos dos policiais com os vestígios encontrados nos corpos das vítimas a fim de checar se as lesões encontradas estão de acordo com a descrição dos autores dos disparos.

A reconstituição também se baseia em perícia feita no local, mas ela foi prejudicada pela retirada dos corpos antes da chegada dos peritos. Os policiais envolvidos afirmam que tentaram socorrer as vítimas, mas algumas chegaram evisceradas ao hospital. A prática contrariou determinação do STF (Supremo Tribunal Federal).

O advogado Daniel Sarmento, autor da ação no STF que limitou as operações policiais em favelas, afirma que o erro na identificação dos corpos e dos locais de mortes reforça o problema na atuação dos policiais.

“Esse é um problema histórico, de desmontar cena de crime. Tanto que foi acolhido pelo plenário do Supremo um pedido para impedir isso. É uma tática antiga para inviabilizar a apuração de responsabilidade”, afirmou.

À Divisão de Homicídios os dois policiais que participaram do suposto confronto no beco da Zélia afirmaram que a única vítima da ocorrência foi Luiz, e não Raí, como apontado no inquérito policial. Já dois agentes envolvidos no tiroteio na travessa Santa Laura, onde seis pessoas foram mortas, reconheceram que Raí estava, na verdade, entre as suas vítimas, e não Luiz.

O corpo de Raí, segundo o IML, foi atingido por dois disparos, um no peito e outro que atravessou lateralmente seu corpo. Já Luiz foi alvo de seis tiros que atingiram o tórax e o braço.

A confusão foi atribuída pelos policiais ao IML. O instituto, porém, não é responsável por atribuir locais de morte. Essa informação deve acompanhar o corpo quando da entrada no local.

Os depoimentos dos quatro policiais foram tomados todos no dia 2 de junho pela Divisão de Homicídios. A operação foi realizada no dia 6 de maio.

Cinco dias depois do depoimento se encerrava o prazo para envio do inquérito para o Ministério Público do Rio de Janeiro. A Promotoria montou uma força-tarefa para investigar de forma independente.

O inquérito sobre a morte de Carlos Ivan, porém, também apresenta divergências relevantes.

Os policiais civis envolvidos em sua morte afirmam que o corpo foi levado para o Hospital Evandro Freire. O termo de depoimento dos agentes indica inclusive o boletim de atendimento médico (BAM) da vítima.

A mãe de Carlos Ivan, porém, afirmou à Polícia Civil que encontrou o corpo do filho no Hospital Souza Aguiar. Em caso de morte violenta, as unidades de saúde não fazem transferência de mortos entre si. Apenas enviam ao IML.

Há também divergência entre as informações do BAM indicado pelos policiais e o laudo cadavérico feito no IML. Enquanto o documento do hospital descreve ferimentos no abdômen, a perícia policial indica lesão profunda na face.

Os dois agentes envolvidos nessa ocorrência prestaram novo depoimento, mas não esclareceram as divergências.

O descontrole sobre o local exato da morte de cada vítima já havia sido identificado pela Folha num relatório de inteligência produzido pela Polícia Civil três dias após a operação.

O documento também trocava o local da morte de outras duas vítimas da operação. A Polícia Civil afirmou que se tratava de um erro de digitação em “uma unidade numérica”, em referência ao número dos boletins de ocorrência.

A operação no Jacarezinho teve como objetivo, segundo a Polícia Civil, o cumprimento de 21 mandados de prisão contra pessoas denunciadas sob acusação de associação ao tráfico de drogas. O vínculo com a facção criminosa foi estabelecido por meio de fotos com armas em redes sociais.

A troca de tiros perdurou por mais de cinco horas. Os policiais invadiram ao menos cinco casas de moradores atrás de supostos bandidos. Homens em fuga, por sua vez, pularam lajes das residências. Ao fim do dia, ruas e casas da favela estavam repletas de marcas de sangue.

Dos 28 mortos, um era policial civil e 27 pessoas que, de acordo com o estado, atiraram contra os agentes. Três dos mortos eram alvo dos mandados de prisão. Segundo a Polícia Civil, todas as vítimas tinham antecedentes criminais, alguns deles antigos, ou vínculo com o tráfico confirmado por parentes.

Seis pessoas foram presas —sendo que três eram alvo de mandados expedidos pela Justiça— e foram apreendidos na operação cinco fuzis, uma submetralhadora, duas espingardas, 16 pistolas e 12 granadas.

A Defensoria Pública afirma que há relatos de mortos que haviam se entregado para a polícia antes de serem baleados. Além disso, critica o desfazimento das cenas dos crimes antes da realização de perícia.

Equívoco ocorreu porque policiais dos confrontos não foram os que efetuaram socorro, diz polícia

A Polícia Civil disse, em nota, que "houve inclusão equivocada das vítimas em registros distintos".

"Esse fato ocorreu porque em alguns casos os policiais envolvidos nos confrontos não foram os mesmos que efetuaram o socorro. No local de confronto não era possível fazer a identificação de cada baleado visto que a área não foi estabilizada", disse o órgão.

De acordo com a nota, a correção ocorreu "na primeira oportunidade em que os policiais envolvidos foram ouvidos depois do fato".

Em relação às divergências nos documentos sobre a morte de Carlos Ivan, a polícia disse que ela ocorreu "porque no momento do registro ainda não se tinha a correta identificação de todas as vítimas, associado ao fato de que os policiais do confronto não foram os mesmos do socorro".

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