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Hábitos e Consumo no Segundo Ano da Pandemia

Vera Iaconelli: 'Quarentena acabou com os encontros sociais chatos'

Muitas pessoas relataram se sentirem aliviadas por não participarem de reuniões familiares que não tinham coragem de recusar

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Em março de 2020, quando nos descobrimos sob o ataque de um inimigo invisível, as reações foram as mais variadas. Muitos relataram pânico e insegurança mas, ao mesmo tempo, um surpreendente alívio pela interrupção da monotonia do cotidiano, de tarefas excruciantes ou convívios forçados.


Sentimentos ambivalentes frente ao mesmo acontecimento são a tônica entre humanos, sempre ávidos por algo que dê sentido para viver, ainda que seja uma catástrofe.

Embora tenhamos sido todos jogados ao mar, ficou claro que alguns navegavam em iates, enquanto outros abraçados aos destroços. Não precisamos de uma comoção dessa natureza para saber do abismo social que nos divide e prejudica a todos, mas, na hora de decidir de quem cuidamos primeiro, nossas injustiças estruturais foram medidas em porcentagem de mortos, doentes e esfomeados.

A pandemia virou nossa vida de pernas para o ar e acarretou o aumento alarmante do uso de antidepressivos, ansiolíticos, álcool e drogas em geral, mas também da violência doméstica, suicídios e outras manifestações mensuráveis do sofrimento, segundo levantamentos dos ministérios da Saúde e da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

A psicanálise se interessa pela forma como cada um se vira diante do imponderável, mas sem esquecer que isso está diretamente ligado aos fenômenos sociais nos quais estamos inseridos. Daí a importância de pesquisas como a recém-publicada pelo Datafolha, que mapeia os comportamentos autodeclarados da população durante a pandemia e compara os resultados com os da pesquisa do ano anterior. Ela nos ajuda a pensar as saídas que encontramos para nos adaptarmos a uma crise que, no caso brasileiro, não se resume ao caos sanitário, mas inclui a insegurança política e a derrocada econômica.

O estudo confirma que, feita a adaptação inicial, pouca coisa mudou no comportamento geral passado um ano. Sugere mais que as coisas se assentaram, incluindo as diferenças de gênero, raça e classe social, que se mantêm cruéis.

As saídas para o espaço público aumentaram (de 90% para 96%), como somos capazes de testemunhar olhando pela janela, embora as visitas a amigos e familiares tenham recuado. Era de se esperar que, com o afrouxamento dos cuidados com o isolamento, a frequência à casa de amigos e familiares aumentasse, mas não foi o que aconteceu.

Será que descobrimos a desculpa perfeita para evitar encontros sociais compulsórios? Muitas pessoas relataram no consultório se sentirem aliviadas por não terem que participar de encontros e almoços de família que não tinham coragem de recusar.

A vida sexual parece ter piorado para 24% dos homens e 15% das mulheres, o que é reconhecível na fala de pacientes. Se juntarmos isso com o fato de que as mulheres continuam se incumbindo muito mais das tarefas domésticas do que os homens, enquanto eles se dedicam mais a si mesmos, talvez dê pra arriscar uns palpites na área.

Ter um homem que assume seu lugar na casa, tanto quanto a mulher, se tornou mais excitante do que ser chamada de gostosa depois de passar o dia limpando e cozinhando para o bofe. Talvez o mais inesperado seja a declaração de que 17% acha que a vida sexual melhorou, o que revela que entre humanos as diferenças se impõem.

O tempo dedicado à lição de casa dos filhos também diminuiu, o que pode revelar menos ansiedade dos adultos em relação ao desempenho escolar. Foi um ano no qual alertamos insistentemente para o fato de que expectativas irrealistas adoeceram crianças, professores e pais.

A tristeza é declarada espontaneamente por quase um terço dos entrevistados e nos faz lembrar que, segundo pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos em março de 2021, o brasileiro é o povo que mais se sentiu mais solitário durante a pandemia (50%).

Seguimos enfrentando as mazelas de uma crise sem precedentes e tentando encontrar formas de sobreviver enquanto sujeitos e enquanto nação. Se nos basearmos em tudo que fomos capazes de encarar até aqui, não vejo porque não conseguiríamos.

Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP

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