Descrição de chapéu drogas

Precisamos dizer a usuários da cracolândia que a vida deles importa, diz canadense

Para Dan Small, criador de centro de consumo supervisionado em Vancouver, preconceito e visão desumanizada sobre dependentes atrapalham políticas públicas

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São Paulo

A repulsa à pobreza e a grupos étnicos vulneráveis é uma barreira para o tratamento de dependentes químicos, avalia o antropólogo Dan Small, pesquisador associado da Universidade da Colúmbia Britânica, no Canadá, e membro do Observatório Das Adições, no Brasil.

Para ele, seja no centro da capital paulista ou no Downtown Eastside (DTES), a cracolândia de Vancouver, a maneira como a população e o poder público lidam com moradores de rua e a questão do abuso de substâncias lesa a dignidade desses grupos.

Small é um dos criadores do primeiro centro de consumo de drogas supervisionado da América do Norte. Fundado em 2003, o Insite ("no local", em português) é parte de um programa de redução de danos baseado em Vancouver. O bairro que recebeu o primeiro Insite foi Downtown Eastside.

Guarda civil, de costas, observa dependentes químicos agrupados em torno de monumento
Guarda-civil vigia frequentadores da cracolândia durante operação na praça Princesa Isabel, em SP< em 11 de maio - Danilo Verpa - 11.mai.2022/Folhapress

A iniciativa integra uma série de ações cujo objetivo é resguardar a dignidade de moradores de rua e dependentes químicos por meio da oferta de emprego, moradia, saúde (da odontologia à psicologia) e espaço para arte e cultura.

"É importante que elas permaneçam vivas, por isso criamos este programa. Existem, hoje, 49 locais de consumo supervisionado no Canadá, mais do que em qualquer outro país do mundo. E o que isso quer dizer para as pessoas sem-teto e usam drogas? Que a vida delas importa."

Um dos desafios do programa é combater um processo histórico de construção de narrativas que deu ao Downtown Eastside a imagem de lugar desumanizado. Manchetes que falam em "os quatro quarteirões do inferno" e "caos e depravação" mostram o estigma do bairro.

Termos que, para o pesquisador, não diferem muito do senso comum atrelado à cracolândia de São Paulo. "A imprensa descreve o bairro de forma muito depreciativa. Isso tem um grande efeito em como abordamos a situação. Quando participei de uma reunião no Brasil, recentemente, ficou perceptível a maneira como a cracolândia é enquadrada", avalia Small.

A dificuldade de acesso à moradia, saúde e emprego está no cerne da questão, segundo Small. Ele afirma que a base para a recuperação de uma pessoa em situação de rua ou de dependência química é a busca de um sentido para a vida. Isso não é possível sem que haja reconhecimento da dignidade dessas pessoas pela sociedade na qual está inserida.

"A pessoa em maior sofrimento é, muitas vezes, aquela que precisa disso, do senso de valor próprio. Em parte um senso de estima da comunidade e em parte autoestima", diz.

A falta de sensibilidade em relação a moradores de rua e dependentes químicos e o julgamento moral que recai sobre esse grupo atrapalha a recuperação, segundo o especialista. Vergonha e medo da repressão policial, ambos causados pela estigmatização da dependência química, alimentam a aglomeração dessas pessoas em busca de proteção.

"Esses grupos são excluídos da odontologia, da formação profissional, da atenção à saúde mental; não têm moradia, conta em banco; são excluídos do próprio tratamento contra dependência. Essas são questões primárias para lidar com usuários de drogas em vulnerabilidade", diz Small.

Esta quinta (11) marca três meses de uma megaoperação que retirou usuários de drogas da praça Princesa Isabel, em São Paulo. O uso da força apenas dispersou o fluxo de dependentes que se aglomeravam no endereço da cracolândia. Parte do que sobrou do grupo se deslocou para a rua Helvétia próximo a avenida São João, ou está dispersa em outros pontos da região central, como a Santa Ifigênia.

Até o momento, não há indícios de queda no uso de drogas na região. Os relatos de roubos no entorno, porém, aumentaram logo após a ação, segundo o delegado responsável pela área.

Contexto canadense

No Downtown Eastside, o uso da força como resposta ao abuso de substâncias foi a principal política pública por décadas. Mas a história do combate às drogas no Canadá tem ligação profunda com racismo e xenofobia.

De acordo com a Coalizão Canadense de Políticas de Drogas, composta por mais de 50 organizações, a população de Vancouver responsabilizava indígenas e migrantes chineses por uma suposta corrupção de homens brancos e cristãos.

Entre as décadas de 1880 e 1920, as tensões raciais entre esses grupos se acirraram.

Os indígenas eram proibidos por lei de comprar bebidas alcoólicas; já os chineses não podiam ter negócios fora de Chinatown. "Alguns chineses da época fumavam ópio para aliviar a dor e relaxar. O fumo de ópio foi ligado a homens racializados", diz o histórico produzido pela coalizão.

O antropólogo Dan Small, pesquisador associado da Universidade da Colúmbia Britânica - Reprodução Exchange Supplies

Na década de 1940, a criminalização do uso de drogas no Downtown Eastside ganhou força ao mesmo tempo em que era enfraquecida a resposta à dependência química por meio da saúde pública.

De acordo com a coalizão, cerca de 75% das condenações envolvendo drogas eram por posse, e três quartos dessas condenações se converteram em prisão.

Atualmente, existem 49 locais como como o Insite criado por Small. "Os serviços de consumo supervisionado usam um modelo de redução de danos, o que significa que eles se esforçam para diminuir as consequências adversas à saúde, sociais e econômicas do uso de drogas sem exigir a abstinência", de acordo com a Vancouver Costal Health, autoridade de saúde da região costeira da província canadense.

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