Grupo armamentista faz ofensiva jurídica contra jornais e comentaristas

Proarmas moveu mais de 20 ações contra comentaristas e órgãos de imprensa em um ano

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo e Brasília

Desde o final de 2021, a Associação Nacional Movimento Pró Armas, o maior grupo armamentista do país, moveu ao menos 20 ações contra veículos de comunicação e comentaristas que trataram do aumento na circulação de armas no Brasil e de seu descontrole.

Em janeiro de 2019, o presidente Jair Bolsonaro (PL) flexibilizou, por meio de decretos, as regras de acesso a armas e munições no país. Civis passaram a ter permissão para comprar em quantidade e calibres antes não permitidos, e o Brasil vem batendo recordes em registros e importação.

Protesto da Proarmas na Esplanada dos Ministérios, em Brasília (DF) - Pedro Ladeira - 9.jul.2020/Folhapress

A ofensiva jurídica do Proarmas contra veículos de imprensa é liderada por seu presidente, o advogado Marcos Pollon (PL), o deputado mais votado em Mato Grosso do Sul e promessa da bancada da bala na próxima legislatura. As ações tramitam no Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul e pedem indenização por dano moral coletivo aos CACs (caçadores, atiradores e colecionadores de armas) que integram a associação. São pedidos R$ 10 mil de reparação para cada associado.

Alegam que as informações veiculadas em mídias como TV Globo, UOL, BBC Brasil, Ponte Jornalismo e Tá na Roda Notícias geraram danos morais aos CACs ao associar a ampliação de armas em circulação ao aumento da violência armada.

Procurado, Pollon cita duas motivações para acionar a Justiça contra reportagens e artigos: o fato, a seu ver, de associarem o tiro esportivo ao crime organizado e de utilizarem o que ele chama de narrativas inverídicas sobre os dados.

"Só não usar fake news e narrativas nas publicações que a gente não processa", anunciou o presidente da associação.

As reportagens questionadas, via de regra, nem sequer mencionam a associação ou os CACs e citam dados oficiais de venda de armas no Brasil e suas consequências, constatadas e potenciais.

Estudos internacionais já indicaram que onde há mais armas, há mais criminalidade armada. Um deles, feito por pesquisadores das universidades Stanford e Columbia, nos EUA, apontou que os estados norte-americanos que haviam permitido porte de armas tinham maior criminalidade violenta que os demais, passados dez anos das leis chamadas "right to carry" (direito ao porte, em inglês).

No Brasil, estudo do economista Daniel Cerqueira apontou que 1% no aumento da difusão de armas gera um aumento de 1,1% na taxa de homicídios e de 1,2% na taxa de latrocínio.

Três ações do Proarmas foram extintas: contra o Instituto Sou da Paz, a Folha e o Tá na Roda. A ação contra a Folha foi indeferida, entre outros motivos, porque a Proarmas não anexou os necessários dados e procurações de seus associados. Havia, ainda, uma confusão de base: a reportagem no foco da ação não havia sido publicada pela Folha. Ação contra o Sou da Paz e contra o Tá na Roda foram extintas também por falta de dados e procurações.

João Leopoldo Viana Vargas, diretor-executivo do Tá na Roda Notícias, ficou sabendo da ação por meio da Folha. "Acredito ser uma forma de tentar calar, principalmente, os veículos de menor porte, que têm pouca estrutura", afirma ele. "O que a gente quis foi ampliar a discussão sobre o assunto."

Roberto Rainha, advogado da Ponte Jornalismo, informou que a reportagem em questão, intitulada "Brasil, grande mercador da violência armada na América Latina", "divulgou o que foi noticiado por especialistas e estudiosos, sempre com a citação da fonte e respeitando todos os princípios éticos".

Para a advogada Taís Gasparian, que defende o UOL, "o intuito desse tipo de ação é meramente intimidatório porque não há fato falso no texto" questionado judicialmente. A ação do Proarmas cita e contesta passagens que simplesmente inexistem no texto veiculado no UOL. "A emissão de opinião é livre e constitui princípio constitucional no país", lembra ela.

Procuradas, a TV Globo e a BBC afirmaram não comentar casos sub judice.

Alguns processos têm como alvo, ainda, organizações da sociedade civil que atuam no campo da política de armas no Brasil há mais de dez anos, como o Instituto Igarapé e o Instituto Sou da Paz.

Juliana Santos, advogada da Rede Liberdade que atua no caso, explica que o Proarmas contesta dados que relacionem aumento de armas a aumento da violência, mas, "além de estudos apontarem que mais armas geram mais feminicídios, mais suicídios, mais acidentes com crianças em casa, essas armas ainda podem ser desviadas para o crime".

Episódios recentes, como a prisão de atirador esportivo suspeito de vender armas para criminosos e a reação do ex-deputado Roberto Jefferson a um mandado de prisão, corroboram "os estudos e as reportagens que estão tentando processar", avalia a advogada.

Jefferson estava com a sua licença CAC suspensa quando abriu fogo contra policiais federais que cumpriam mandado para prendê-lo. Dois ficaram feridos.

Para Santos, as ações do Proarmas configuram uma "instrumentalização do poder Judiciário". "É um atentado contra a liberdade de expressão porque os profissionais passam a ter receio de tratar desse tema, ainda que de maneira técnica e com base em dados", diz.

De acordo com Denise Dora, diretora-executiva da Artigo 19 no Brasil, essa é uma estratégia cada vez mais recorrente no mundo. "É um movimento articulado de censura de jornalistas através de mecanismo judicial, com conexões com a ultra-direita evangélica", aponta ela, lembrando o caso da jornalista Elvira Lobato, processada por fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) após reportagem sobre o império empresarial construído pela igreja em 30 anos.

"As chances de essas ações prosperarem é remota, mas elas amedrontam e geram um movimento de autocensura porque colocam veículos e jornalistas em situações muito complicadas. Muitos não têm dinheiro para se defenderem", diz Dora.

O aumento de casos contra jornalistas no mundo e, em especial, no Brasil fica evidente nos dados do Media Defence, ONG internacional que atua auxiliando juridicamente jornalistas em casos qualificados pela sigla Slapp (litígio estratégico contra a participação pública, em inglês).

Até 2020, a organização havia recebido apenas um pedido de assessoria jurídica vindo do Brasil. Desde então, o país virou campeão de casos, com 28.

"São ações feitas não para ganhar a causa, mas para retirar o conteúdo e causar o embaraço, a dificuldade e a preocupação financeira em jornalistas, veículos de imprensa e defensores de direitos humanos", explica Carlos Gaio, gerente jurídico e advogado do Media Defence.

Em 2021, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal para requer maior proteção para jornalistas contra a prática do assédio judicial.

Recomendação do Conselho Nacional de Justiça de fevereiro de 2022 qualifica de judicialização predatória "o ajuizamento em massa de ações no território nacional com pedido e causa semelhantes em face de uma pessoa ou de um grupo específico de pessoas a fim de inibir a plena liberdade de expressão" e orienta tribunais a adotar medidas de grupamento das ações, além da análise de eventual má-fé dos autores.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.