Fala de Lula sobre miscigenação como resultado positivo da escravidão gera controvérsia

Entidade do movimento negro diz que discurso relativiza o período e que ideia de mestiçagem esconde discriminações; Planalto afirma que há distorção

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São Paulo

Uma declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), durante a 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima, na última semana, gerou críticas ao apontar a miscigenação do Brasil como um resultado positivo do período da escravização da população negra.

Na segunda (13), em visita à terra Raposa Serra do Sol, Lula fez um discurso em que tentou exaltar os povos indígenas e negros e criticou os colonizadores que, "há 500 anos nesse país", "resolveram vender a ideia de que era preciso fazer a escravidão vir para o Brasil porque os indígenas eram preguiçosos, não gostavam de trabalhar".

Lula cercado de jovens indígenas
O presidente Lula é recebido por indígenas durante 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas de Roraima - Ricardo Stuckert/Presidência da República/Divulgação

Foi nesse contexto que o presidente citou a miscigenação como um lado positivo daquele período.

"Toda a desgraça que isso causou ao país, causou uma coisa boa, que foi a mistura, a miscigenação, da mistura entre indígenas, negros e europeus, que permitiu que nascesse essa gente bonita aqui, que gosta de música, que gosta de dança, que gosta de festa, que gosta de respeito, mas que gosta de trabalhar para sustentar a sua família e não viver de favor de quem quer que seja", afirmou.

O episódio despertou críticas de ativistas, que argumentaram que não há saldo positivo da escravidão. Citaram ainda que a mestiçagem muitas vezes foi fruto de violência contra mulheres negras e que a ideia de elogiar a mistura de raças está ligada ao mito da democracia racial que foi usado na história brasileira para negar a existência do racismo.

"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva relativizou a escravidão ao afirmar que, apesar de ter sido uma desgraça, teve uma consequência boa, a miscigenação", declarou, em nota, o MNU (Movimento Negro Unificado).

"Ao apontar nossos problemas de relações étnico-raciais e sobre a constituição de nossa identidade nacional, esqueceu-se de que a mestiçagem é fruto de um dispositivo de poder, e longe de criar a cordialidade, o gosto pela música, dança, festa, buscou tornar dóceis as etnias que estão na raiz de nossa nacionalidade, de modo a reforçar discriminações históricas", declarou a entidade, uma das principais do movimento negro do país.

O MNU pondera que Lula já reconheceu em outros momentos a gravidade da escravização de negros.

"Em 2005, numa de suas viagens à África, ao visitar o local onde funcionou um entreposto de venda de escravos na Ilha Gorée, no Senegal, pediu 'Perdão pelo que fizemos aos negros', como também reconheceu, em vários outros momentos, a dívida histórica com a população negra e indígena, apontando para a construção de mais políticas públicas para a igualdade racial e pela reparação", afirma a nota.

Para a socióloga Flávia Rios, professora da UFF (Universidade Federal Fluminense) e pesquisadora do Afro-Cebrap (Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial), a fala do presidente apresenta duas narrativas: uma que reforça estereótipos e outra que busca exaltar os povos minorizados.

"Tem um Lula antigo desatualizado com uma tentativa de ser atualizado", afirma Rios. De acordo com a pesquisadora, apesar do discurso conflituoso, o presidente avança ao trazer para o debate as questões étnico-raciais e o colonialismo, temas que, segundo ela, em outras épocas não eram tratados mesmo pelo Partido do Trabalhadores.

"Existe um esforço de querer falar com os agentes sociais dentro de uma nova linguagem política, antirracista, mas também há um homem que se formou ainda numa cultura da ditadura militar, no discurso ligado à democracia racial, que é um discurso que permeou a primeira gestão dele, permeia a trajetória dele", afirma.

Desde a campanha eleitoral, Lula tem sido cobrado a atualizar o seu discurso em questões gênero, raça e população LGBTQIA+.

Para o governo, afirmar que Lula disse que a escravidão foi boa é uma distorção.

"O presidente Luiz Inácio Lula da Silva classificou a escravidão como 'uma desgraça' para o Brasil, durante o pronunciamento na abertura da 52ª Assembleia Geral dos Povos Indígenas, conforme é possível confirmar no link", declarou o Palácio do Planalto em nota nesta sexta (17).

"Distorcer essa afirmação é negar tudo que ele já falou sobre o legado de exclusão e de violência da escravidão na história do país e da necessidade de políticas públicas de reparação como reconhecimento de territórios quilombolas e cotas raciais realizadas em seus governos anteriores", afirma o texto.

O Planalto destacou fala recente do presidente em que condenou a escravatura e a violência contra pessoas negras.

"Ao tomar posse, neste ano, entre as primeiras medidas de governo, recriou o Ministério da Igualdade Racial, 'para enterrar a trágica herança do nosso passado escravista', disse ele, no discurso. Na ocasião, Lula reafirmou ainda 'o compromisso de combater dia e noite todas as formas de desigualdade de renda, de gênero e de raça'. E destacou que 'é inaceitável que continuemos a conviver com o preconceito, a discriminação e o racismo'."

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