Descrição de chapéu Quilombos do Brasil

Unidos pela exclusão, escravizados e hansenianos se refugiaram em quilombo no interior de SP

Negros fugiam para albergues nos quais infectados com a doença viviam isolados, em Guaratinguetá; remanescentes da comunidade buscam regularização de quilombo urbano

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Fernando Granato
Guaratinguetá (SP)

Em 1860, o jornalista português Augusto-Emílio Zaluar registrou em seu livro "Peregrinação pela Província de São Paulo" ter encontrado nas imediações de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba paulista, "escravos fugidos que vão ordinariamente acoitar-se nos albergues dos leprosos", pequenas choupanas embrenhadas nas matas onde viviam os doentes com hanseníase.

Zaluar conta que as pessoas com hanseníase escondiam-se em suas choupanas, "cobertos de andrajos". Junto com os escravizados, formavam a camada mais baixa da sociedade. Eram unidos pela exclusão.

Tamandaré, onde fica o quilombo urbano no qual vivem os remanescentes, na cidade de Guaratinguetá - Marlene Bergamo - 24.abr.23/Folhapress

Segundo o médico Flávio Maurano, que escreveu a "História da Lepra no Brasil e sua Distribuição Geográfica", não era raro que cativos fugidos procurassem acampamentos e se fizessem passar por doentes, para escapar do cativeiro.

Havia, ainda, a crença de que os próprios escravizados haviam contribuído para a propagação da moléstia no Brasil, o que agravava ainda mais o caldo discriminatório contra os africanos e doentes.

Passados 163 anos, remanescentes da comunidade buscam junto às autoridades brasileiras a regularização de um quilombo urbano, onde vivem atualmente na periferia de Guaratinguetá.

O quilombo já foi cadastrado no Itesp (Instituto de Terras do Estado de São Paulo), mas segue sem título de propriedade.

Guaratinguetá foi um dos principais municípios cafeeiros do Vale do Paraíba. Chegou a ser responsável por 18% de toda produção daquela região —sempre com mão de obra escravizada. Segundo o primeiro censo brasileiro, o Recenseamento Geral do Império do Brasil, de 1872, a cidade tinha 20.837 habitantes naquela época. Desses, 16.485 eram livres e 4.352, escravizados.

De acordo com o pesquisador Jeferson Alves de Oliveira, 58, presidente da associação Quilombolas do Tamandaré, aquele antigo albergue na mata —localizado atrás da velha capela de Aparecida, na época ainda distrito de Guaratinguetá— transformou-se depois no quilombo dos Forros.

A comunidade recebeu esse nome porque abrigava cativos libertos depois da Lei Áurea de 1888. Já no início do século 20, os primeiros remanescentes daquele grupo migraram para um território mais perto da cidade, chamado de Motas. De lá, já nos anos 1950, foram para a periferia de Guaratinguetá, no bairro Tamandaré.

"Os descendentes do quilombo dos Forros foram vindo cada vez mais para perto da cidade, onde havia possibilidade de ganho", diz Oliveira. "Até que se instalaram no Tamandaré e aqui cultivaram sua cultura, com o jongo e a capoeira, por exemplo."

Hoje, os grupos de jongo do Tamandaré estão entre os mais respeitados do estado de São Paulo e se apresentam por todo o país.

No Tamandaré, as apresentações de jongo acontecem nas festas santas de junho —Santo Antônio, São Pedro e São João—, em 13 de maio (Dia da Abolição da Escravatura) e em 7 de setembro. As ruas são enfeitadas com bandeirinhas e a festa dura até o sol nascer no dia seguinte.

senhora negra sentada num sofá
Maria Martins Geraldo, 96, a mais velha remanescente viva dos quilombolas da região - Marlene Bergamo/Folhapress

Embora as apresentações aconteçam apenas nessas datas, o jongo movimenta o bairro durante o ano todo. Primeiro, a comunidade se move na arrecadação de recursos para as festas, depois na confecção das roupas, bandeiras e, finalmente, no preparo dos alimentos servidos durante as comemorações.

Maria Martins Geraldo, 96, é uma das últimas remanescentes vivas da comunidade que viveu nos Motas. Ela se recorda de uma festa que era realizada em homenagem a um jongueiro chamado Canjarra, que foi assassinado.

No local de sua morte, uma estrada de terra, foi erguido um cruzeiro. Lá, todos os anos, os afrodescendentes se reuniam para o jongo e orações. "Era a festa de Santa Cruz do Canjarra", recorda-se. "Primeiro se rezava, depois era hora da dança e da canelinha, uma bebida feita de canela e cachaça."

Foi ali, nos Motas, que Maria Geraldo conseguiu seu primeiro emprego. Foi trabalhar como cozinheira na casa da família do ex-presidente Rodrigues Alves, que havia governado o Brasil de 1902 a 1906.

Natural de Guaratinguetá, o ex-presidente, morto em 1919, deixou para os familiares uma fazenda. Nela, Maria Geraldo trabalhou por vários anos, até mudar-se para o Tamandaré, onde viveu até casar-se com um militar e se transferir para uma área mais central da cidade, com melhor infraestrutura.

A falta de infraestrutura sempre foi o ponto fraco do Tamandaré. No passado, não havia asfalto, nem água encanada. Vera Lúcia Conceição, 68, lembra que até meados dos anos de 1970, havia apenas uma "torneirinha" no bairro, onde todos os moradores se abasteciam de água, em baldes. "O banho era de bacia e a lama cobria tudo nos dias de chuva", conta.

uma mulher sorrindo
Vera Lúcia Conceição, 68, filha da pioneira do jongo na cidade; em Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, a comunidade quilombola Tamandaré tenta regularizar seu território - Marlene Bergamo/Folhapress

Vera Conceição é filha da falecida dona Toninha, a primeira mulher a participar do jongo naquela região. Ela lembra que ainda nos tempos em que vivia nos Motas, sua mãe enfrentou preconceito e discriminação por participar junto com os homens daquela dança de origem africana, praticada ao som de tambores.

Faxineira, dona Toninha compôs um ponto de jongo que cantava toda vez que os homens tentavam barrá-la na dança, alegando que aquilo não era para mulher.

Com os olhos lacrimejando, Vera Conceição lembra da letra: "Pode mandar, que eu espero. Medo eu não tenho não. Pode mandar, que eu espero. Eu tenho Deus e a proteção".

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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