Descrição de chapéu Folha Mulher Mátria Brasil

Dona Ana Pimentel administrou capitania de São Vicente e criou modo de governar

Espanhola de origem nobre comandou região com autonomia enquanto o marido foi enviado para outro território

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Patrícia Valim

Professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e idealizadora do projeto Mátria Brasil

Salvador

Nos primeiros anos da colonização, as relações comerciais que os indígenas estabeleceram com portugueses, franceses e espanhóis, trocando madeiras e papagaios por utensílios de ferro e algumas armas de fogo, não colocavam em risco seus territórios nem seus modos de vida.

A situação mudou radicalmente quando dom João 3º (1521-1557), rei de Portugal, decidiu acabar com a concorrência comercial e tomar posse do território, considerado patrimônio régio a partir do Tratado de Tordesilhas (1494).

Para isso, a coroa estabeleceu uma aliança com um grupo de nobres com patente militar, algum dinheiro e uma lista de serviços prestados ao rei em outros territórios conquistados. Em contrapartida, a partir de 1532, esse grupo recebeu grandes porções de terras do litoral ao interior, as chamadas capitanias hereditárias.

Ilustração mostra retrato de Ana Pimentel. Ela aparece do peito para cima, usa uma roupa azul marinho com babados brancos ao redor do pescoço, com pontas bem retas. Ela com a cabeça ligeiramente virada para a esquerda, mas olhando em direção ao leitor. Os cabelos são castanho escuro e estão sob uma espécie de véu, também azul escuro. Na testa passam alguns fios, enfeiteis do véu, e os brincos são ovais, grandes e dourados. a mão direita está levantada, aparece na altura da cabeça. Ela segura uma laranja.
Dona Ana Pimentel, espanhola responsável pela administração da capitania de São Vicente - Veridiana Scarpelli

Um dos escolhidos foi Martim Afonso de Sousa, nomeado governador das terras do Brasil em 1531 e capitão donatário de duas capitanias, Rio de Janeiro e São Vicente. Ao tomar posse apenas da capitania de São Vicente, pretendia ampliar as feitorias existentes, escravizar os indígenas para mão de obra e combater os franceses para expulsá-los do Rio.

Dois anos depois, no entanto, ele foi incumbido de servir na Índia. Passou, então, a administração da capitania de São Vicente à sua esposa, uma espanhola de origem nobre, Dona Ana Pimentel, por meio de uma procuração que lhe dava plenos poderes, datada de 3 de março de 1534.

O estatuto jurídico das mulheres brancas e casadas com homens da elite governativa era a submissão ao marido. Porém, se as contingências da colonização no Brasil preservaram as diferenças sociais intrínsecas ao pronome de tratamento "dona", elas conferiram significados próprios aos costumes e ao exercício da Justiça, sobretudo na ausência dos maridos.

a imagem é uma ilustração em preto e branco que mostra Martim Afonso de Sousa, homem branco de barbas e cabelo escuro. ele usa uma roupa suntuosa e um chapéu na cabeça
Martim Afonso de Sousa, militar português que comandou a primeira expedição colonizadora de Portugal ao Brasil - Pêro Lopes de Souza/Wikimedia Commons

Assim, a coroa reconheceu a procuração que Dona Ana Pimentel recebeu de Martim Afonso de Sousa. Não se sabe a data da viagem dela para a capitania de São Vicente –provavelmente ocorreu em 1537, pois no ano seguinte ela nomeou alguém de sua confiança como lugar-tenente em um documento lavrado no Brasil.

Dona Ana Pimentel administrou a capitania valendo-se dos direitos e deveres indicados pelo marido em uma "carta de doação", instrumento legal que lhe garantia poder político compartilhado com o rei e autonomia para exercer a Justiça e obter vantagens econômicas.

Atribui-se à administração dela a ampliação das feitorias iniciais da capitania, com a construção de um forte e de um engenho por meio do trabalho de indígenas escravizados. Também foi responsável por introduzir na região a criação de gado e o cultivo de arroz, trigo e laranja –a fruta era usada para combater o escorbuto, doença causada pela falta de vitamina C, bastante comum entre os tripulantes das navegações.

O poder de Dona Ana Pimentel fica evidente em casos como o de Brás Cubas. Ela doou a ele um lote de terra (uma sesmaria), nomeou-o posteriormente capitão-mor e ouvidor da capitania de São Vicente, contrariando as ordens do marido.

Encerrou sua administração revogando a "aliança patriarcal" estabelecida pelo marido com João Ramalho (casado com a filha do cacique Tibiriçá) para evitar conflitos com indígenas aliados. Autorizou Brás Cubas a abrir os caminhos para os colonos terem acesso às terras férteis do planalto paulista.

De acordo com o testamento assinado pelo casal em 1560, Dona Ana Pimentel voltou para Portugal provavelmente em 1546 e conviveu com Martim Afonso de Sousa até a morte dele, em 1571. Ela morreu logo depois, e foram enterrados lado a lado. Fizeram fortuna com a colonização e ganharam fama nos versos de Camões.

Dona Ana Pimentel não foi a única mulher a administrar uma capitania no Brasil. Em 1554, Dona Brites Mendes de Albuquerque herdou do marido, Duarte Coelho Pereira, a administração da capitania de Pernambuco. De todas as capitanias hereditárias, apenas duas foram exitosas: as que tiveram as Donas no poder.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil, que teve início na última semana com um artigo de Eliane Potiguara, vai retratar mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos serão assinados por algumas das mais importantes historiadoras e escritoras brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada por Patrícia Valim, professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Valim também é uma das coordenadoras do projeto.

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