30 anos depois de chacina da Candelária, local ainda é refúgio para moradores de rua

Maior parte dos sobreviventes do massacre no centro do Rio já morreu ou está desaparecida

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Rio de Janeiro

Há 30 anos, o Brasil tinha duas moedas, o Cruzeiro e o Cruzeiro Real, e os telefones celulares eram artigos de luxo que não cabiam no bolso. Naquele momento, Candelária era apenas o nome da igreja do século 17, construída no centro do Rio de Janeiro e que foi palco do comício do movimento Diretas Já. Passadas três décadas, tudo mudou.

O entorno do templo passou a ser associado à noite de 23 de julho de 1993, quando oito jovens foram mortos no que foi batizado como chacina da Candelária. O caso, que marcou a história da violência contra a criança e o adolescente no Brasil, completa 30 anos neste domingo (23).

Cruz com nome das vítimas da chacina da Candelária é exposta na frente da igreja
Cruz com nome das vítimas da chacina da Candelária é exposta na frente da igreja - Eduardo Anizelli/Folhapress

Naquela época, um grupo de cerca de 70 jovens vivia debaixo das marquises dos prédios que contornam a igreja. Isso apesar de a região ser então o centro financeiro da capital fluminense.

Trinta anos depois, o centro do Rio não tem mais a mesma importância econômica, mas o fluxo de pessoas que trabalham na região ainda é alto. E as marquises dos prédios que contornam a Candelária continuam sendo usadas como refúgio por pessoas em situação de rua, ainda que em menor quantidade.

"Eu conheço a história da chacina, mas não fico pensando nela", conta Thiago do Nascimento Sousa, 31, que mora há dois meses no mesmo local em que aconteceu o ataque. Ele vive lá com a mulher, Karoline Ivone da Silva, 26.

Thiago, que já morou na rua em diversos outros pontos da cidade, conta que encontrou ali um lugar em que pode deixar suas coisas sem que ninguém mexa. Mas isso não significa que o local não é perigoso. "Quero ver passar uma noite aqui e não ter medo", diz.

Não há mais nenhuma das marcas da chacina debaixo da marquise. Uma das poucas coisas que se mantiveram iguais desde a tragédia é uma banca de jornal —algumas das crianças se abrigaram em cima dela para se proteger dos tiros no dia da chacina.

Já o orelhão que ficava ao lado da banca, do qual os jovens fizeram ligações para avisar do crime, já não existe mais.

Os poucos resquícios da chacina da Candelária são duas homenagens aos mortos instalados bem em frente à igreja. Uma cruz, com os nomes das vítimas, e o desenho de oito silhuetas vermelhas na calçada.

Maioria mortos ou desaparecidos

As 72 crianças e adolescentes que estavam na Candelária do dia do massacre e sobreviveram têm, hoje, entre 40 e 50 anos. No entanto, maioria já morreu ou está desparecida, segundo a advogada Cristina Leornado, que prestou assistência ao grupo após o ataque.

"Muitos morreram de forma violenta, por bala perdida, por doenças sexualmente transmissíveis, por tuberculose", diz. "A chacina perdurou por muito mais do que 23 de julho de 1993. São cidadãos que perderam a vida, que não tiveram oportunidade e era de responsabilidade do Estado."

Um dos sobreviventes que está vivo é Wagner dos Santos, hoje com 51 anos. Ele foi baleado quatro vezes naquela noite, a maioria na nuca. Depois, serviu como testemunha chave nas investigações e ajudou no reconhecimento dos autores do crime.

No ano seguinte ao massacre, Wagner sofreu um novo atentado, dessa vez próximo à Central do Brasil. Assim como na primeira vez, levou quatro tiros e sobreviveu. Foi então incluído no Programa de Proteção a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas e se mudou para para a Suíça, onde vive.

Segundo dados de 2000 do Cedeca (Centro Brasileiro de Defesa dos Direitos da Criança e Adolescente), até aquele ano, das 72 crianças e adolescentes que estavam na chacina da Candelária, 44 já tinham morrido. A organização não tem os dados recentes.

A irmã de Wagner, Patrícia Oliveira, o reencontrou por causa da chacina, ao reconhecê-lo pela televisão. Integrante do movimento Candelária Nunca Mais, ela reforça a fala de Cristina de que a maioria das crianças e dos adolescentes que viveram aquela noite não estão mais aqui para contar suas histórias.

"Se ainda tiverem dez por aí, é muito. A morte não veio só no dia da chacinas, mas também nos anos que passaram", diz. "Em 30 anos, o que não aconteceu foi empatia, respeito e dignidade. Senão o cenário era outro".

Entre os sobreviventes que já morreram está Sandro Barbosa do Nascimento, que tinha 15 anos na noite da chacina —foi um dos adolescentes que se abrigaram na banca para fugir dos tiros. Ele morava na rua desde os oito anos, após sua mãe ter sido morta a facadas.

Sete anos depois da chacina, em junho de 2000, Sandro sequestrou o ônibus 174 no Jardim Botânico, zona sul do Rio. Na ocasião, Geísa Gonçalves, uma das reféns, foi morta na troca de tiros entre ele e policiais militares. O jovem foi morto logo em seguida, ao ser capturado e sufocado por agentes dentro da viatura da PM.

Outro caso famoso foi o da faxineira Elizabeth Cristina de Oliveira Maia, morta com três tiros na cabeça em Botafogo, na zona sul do Rio, em setembro de 2000. Na época da chacina da Candelária, ela tinha por volta de 17 anos, era conhecida como Beth Gorda e considerada uma líder entre os jovens. Quando aconteceu o ataque, ela dormia na escadaria da igreja e conseguiu se esconder atrás dos corrimões de pedra do local.

A Polícia Civil concluiu que Beth foi morta por traficantes.

Luta pela memória

Para o aniversário de 30 anos do ataque, a prefeitura reformou a cruz, tratando a madeira e revestindo a base com granito. O pedestal e a placa com as informações do caso também foram melhorados. Foi a forma encontrada para preservar a memória dos que já se foram.

Nesse mesmo sentido, o movimento Candelária Nunca Mais preparou uma série de eventos para não deixar a data passar batida. Na sexta-feira (21), mães de vítimas da violência do Rio fizeram uma vigília. Na segunda (24), haverá um ato na frente da Candelária em que será feita a lavagem da escadaria da igreja. Em seguida, será realizada uma missa e um ato. Depois, uma passeata.

"Não é que o Brasil não tenha memória, é que o Brasil faz questão de apagar. Mas temos que nos movimentar para que esses casos não caiam no esquecimento", diz Cristina.

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