Há 30 anos, em 23 de julho de 1993, oito jovens foram assassinados a tiros no centro do Rio de Janeiro no episódio que ficou conhecido como a chacina da Candelária.
Nos anos seguintes, dos cerca de 70 jovens e crianças em situação de rua que viviam no entorno da Igreja Matriz da Candelária, 39 acabaram morrendo de forma violenta.
"A gente não tem uma sociedade que proteja a criança e o adolescente", afirmou o advogado e jornalista Marcos da Veiga Kalil Filho, oficial de proteção à criança do Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) no Sudeste.
O especialista participou da 19ª edição do ciclo de diálogos Perguntas sobre o Brasil ao lado do ativista e colunista da Folha Preto Zezé, que presidiu a Cufa (Central Única das Favelas) até março de 2023.
O evento, resultado de uma parceria do Centro de Pesquisa e Formação (CPF) do Sesc São Paulo com a Associação Portugal Brasil 200 anos (APBRA) e a Folha, foi realizado na tarde da última quarta, 28, sob o mote "Chacina da Candelária: o cuidado com as crianças melhorou?" O debate foi mediado pelo jornalista Fábio Haddad, editor de Cotidiano, da Folha.
Embora os convidados reconheçam que aconteceram avanços de 1993 para cá —fruto de políticas públicas inclusivas e da emergência dos movimentos negros e de favela do país—, muito ainda precisa melhorar, dizem eles.
"Nós somos uma sociedade violenta", lembrou Preto Zezé. Ele apresenta um argumento que remonta à escravidão perpetrada contra as pessoas negras no país e ao extermínio dos povos indígenas para reforçar o "costume da sociedade brasileira" de limpar pessoas indesejadas do convívio social.
"É importante retomar que uma sociedade pouco acostumada a construir memória está fadada a repetir os seus próprios atos", disse Kalil Filho. Por ter algumas especificidades que a diferem de outras chacinas que ocorreram na história, segundo o advogado, o episódio da Candelária representa bem a relação dúbia que a sociedade brasileira mantém com as suas crianças em situação de rua.
Preto Zezé aponta uma dessas particularidades: "A chacina ocorreu num lugar público, bem conhecido por todos".
Embora a época já fosse marcada pelos desafios causados pela fome e pela intensa migração de famílias do Nordeste para o Sudeste, como ele lembra, o episódio representou um agravamento das consequências da desigualdade social do país. "Quando se vê crianças sendo mortas numa chacina, você começa a repensar o tipo de sociedade que naturalizou essas mortes", disse.
Durante o debate, Kalil Filho expôs a construção retórica que confirma essa naturalização. "A criança tem uma energia, que ora é vista como criativa e positiva, mas que também pode ser vista como perigosa, possivelmente violenta e criminosa", afirmou, reforçando que a criança e o adolescente em situação de rua, em geral, negro, acaba sendo facilmente enquadrado com delinquente. O ódio social gerado contra essa suposta delinquência vai também autorizar uma série de ações para combatê-la.
"Aquelas crianças e adolescentes [mortos na chacina] se colocam como monumentos da nossa história. A Candelária, com suas contradições, é um monumento, e aquelas crianças que estavam ali eram objetificadas. Como objetos, poderiam ser construídos ou destruídos. Elas foram vitimadas por essa percepção da sociedade", disse Kalil Filho.
A conversa, transmitida online pelos canais do Sesc São Paulo, do Diário de Coimbra e da APBRA no Youtube, continua disponível na íntegra. Assista abaixo.
O ciclo Perguntas sobre o Brasil realiza sempre às quartas-feiras, a cada duas semanas, debates sobre diversos aspectos da cultura e da identidade brasileiras. O evento tem como inspiração o projeto 200 anos, 200 livros, iniciativa lançada em maio do ano passado que reuniu duas centenas de obras importantes para entender o país.
A próxima edição, que vai discutir a atualidade da obra de Luiz Gama, está marcada para o dia 12 julho, às 16h, com transmissão ao vivo pelos canais citados.
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