Descrição de chapéu violência

Efeito de alta de armas de fogo em mortes violentas é de longo prazo, dizem especialistas

76% das mortes violentas no Brasil são por armas de fogo, proporção acima da média mundial

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São Paulo

Apesar da queda das mortes violentas no Brasil, o número de armas em circulação nos últimos anos, que chegou a 1,5 milhão de registros ativos em 2022, é um problema que deve contribuir para a violência nas próximas décadas, apontam especialistas.

Das 47.508 mortes no ano passado, segundo dados do 17º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgados na quinta (20), 76,5% foram causadas por armas de fogo.

Essa participação das armas de fogo em mortes violentas intencionais passou a ser monitorada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em 2019. O índice reúne os crimes de homicídios dolosos, latrocínios, lesão corporal seguida de morte e mortes por intervenção policial, considerando agentes que estão ou não em serviço.

foto mostra fuzis de cor preta dispostos sobre mesa
Depósito de armas apreendidas na divisão de produtos controlados do DPPC (Departamento de Polícia de Proteção à Cidadania), em São Paulo - Rubens Cavallari - 5.ago.22/Folhapress

Segundo especialistas ouvidos pela reportagem, o efeito do aumento da circulação de armas não é imediato. "Até 1980, 40% dos homicídios cometidos no Brasil tinham uso de arma de fogo. Esse número começa a aumentar quando a gente tem uma enxurrada de armas no mercado, a partir da década de 1980. Depois, há uma estabilização em torno de 70%", diz o policial federal e conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública Roberto Uchôa.

Para ele, o país está diante de uma segunda edição da entrada em massa de armas no mercado. "O que me preocupa é que nós vivenciamos agora uma segunda corrida armamentista. Parecida com a anterior, mas com calibres muito mais potentes e armas de capacidade muito superior."

A relação do aumento do número de armas com a queda de mortes violentas intencionais e homicídios dolosos, que respondem pela maior parte do índice, ainda é uma incógnita para especialistas. Segundo Uchôa, os efeitos não são imediatos e podem não ser os mesmos.

"Não sei se teremos esse aumento percentual de homicídios por arma de fogo. Mas preocupa o potencial aumento de mortes em brigas de vizinho, de trânsito, e, claro, feminicídio e violência doméstica. A violência por arma de fogo dura no tempo, ainda sofremos efeitos da década de 1980."

Já Hugo Santos, diretor-presidente da Aspaf (Associação dos Proprietários de Armas de Fogo do Brasil), afasta a ideia de uma segunda corrida armamentista e diz que a potência do armamento não é o que define o risco.

"Salvo algumas mudanças de modelo, é o mesmo funcionamento das armas que existem hoje. São os mesmos calibres, nada mudou. A pessoa que está usando é que vai ditar a capacidade de neutralizar o outro."

Ainda, ele diz que embora existam outros fatores, a ampliação do acesso a armas colaborou para a redução de homicídios.

"Não dá para afirmar que a questão de redução se deve exclusivamente às armas, há outras questões aí, de segurança pública nos estados. Mas o fato é que, com a facilitação do acesso a armas de fogo por cidadãos de bem, que não respondem a crimes, houve redução", afirma. "Significa que mais armas na mão dos cidadãos não significa aumento de criminalidade."

A questão contrapõe uma das principais bandeiras do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que facilitou o acesso a armas e munições durante seu mandato, e o governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que publicou, na sexta (21), o segundo decreto deste ano para restringir o acesso a armas no país.

Bolsonaro relacionava a queda de homicídios durante seu governo à ampliação de armas. Críticos, no entanto, ressaltam que as mudanças feitas pelo ex-presidente levaram a um descontrole sobre armamentos, incluindo os de calibre restrito, e a desvios de armas para o crime organizado.

Santos cita que o alto número de armas recadastradas pelo governo mostra que os dispositivos estão na mão de seus proprietários legais, "que não respondem a crimes, elas estão em suas casas", afirma. "Alguns têm arma para a posse, para a defesa pessoal do seu patrimônio, da sua família, outros têm para a prática esportiva, para a caça, para a coleção."

Sobre os desvios, ele afiram que o acesso ilegal independe das facilidades dos últimos anos. "Nas mãos de bandidos elas sempre estiveram, e eles não usam os meios legais para adquirir arma de fogo. Não tem idoneidade, a certidão não sai", diz Santos, da Aspaf.

Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, lembra que as discussões sobre a redução de homicídios levam em conta fatores como as dinâmicas do crime organizado, o envelhecimento da população (com menos jovens envolvidos em ações violentas) e políticas de prevenção com metas claras de redução de mortes.

"É uma decisão política. Cria-se uma integração de trabalho das polícias no mesmo espaço, com metas de resultados e prestações de contas periódicas. É preciso esclarecer os casos e fazer todas as operações com objetivo nos resultados. Não é milagre."

Mas a alta de armas em circulação, ela diz, pode já estar se tornando mais letal para mulheres. "Quando desdobramos alguns tipos de violência, a arma tem papel relevante, como no feminicídio."

De toda forma, segundo a especialista, o Brasil tem um índice alto em comparação com o resto do mundo. Enquanto as mortes por arma de fogo no país chegaram a 76,5% do total no ano passado, dados de 2015 do relatório Global Burden of Armed Violence, da organização suíça Geneva Declaration, indicam que, no mundo, essa quantidade fica em 44%. Não há números mais recentes.

Ela também aponta a potência das armas atuais como fator de maior risco. O percentual de pistolas 9 mm, as mais vendidas ao cidadão comum e a CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), apreendidas passou de 3% em 2018 para 23% em 2022.

"É uma bomba-relógio. Se há uma disputa armada entre facções criminosas, as armas são mais potentes. A redução já vinha há alguns anos, aumentou em 2020, e caiu em 2021 e 2022. É um equilíbrio muito delicado", afirma Ricardo.

"As armas vão circular, serão vendidas, desviadas, e temos um tempo de dois anos em que podemos ver mais deste efeito. Contratamos um pacote, mas não sabemos os termos e as parcelas dele."

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