Após dispersão da cracolândia, preço dos imóveis caiu 27% em ruas afetadas

No segundo semestre de 2022, apartamentos foram negociados a valores mais baixos do que no ano anterior em seis vias na região central de SP

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São Paulo

Um prédio na rua Guaianases está com 20 dos 56 apartamentos vazios há mais de seis meses, desde quando a cracolândia passou a tomar a calçada em frente. No sétimo andar, dois apartamentos ainda guardam móveis e pertences dos antigos moradores que se mudaram às pressas com medo do aumento da violência no centro de São Paulo. Com a rua tomada pelos dependentes químicos, a mudança se resumiu ao essencial, e sofás, guarda-roupas e livros foram deixados para trás.

Além de apartamentos desabitados, a dispersão de grupos de usuários de drogas por diversos pontos na região desvalorizou os imóveis negociados nas ruas afetadas no segundo semestre de 2022 em relação ao ano anterior.

A cracolândia deixou o parque Princesa Isabel em maio do ano passado, após uma ação policial. Desde então, tem migrado por diferentes vias do centro paulistano.

Levantamento da Folha com base em dados municipais do ITBI (Imposto sobre Transmissão de Bens Imóveis) apontou que o preço médio do metro quadrado negociado em quarteirões ocupados pela cracolândia na Princesa Isabel e nas ruas Helvétia, Gusmões, Frederico Steidel, Vitória e Guaianases ao longo do segundo semestre de 2022 foi de R$ 2.654. O montante representa queda de 27% em relação ao mesmo período no ano anterior, quando a média calculada foi de R$ 3.635. Todos os valores citados na matéria foram corrigidos pela inflação.

Apartamento na rua Guaianases com pertences de moradores que deixaram o endereço às pressas após a chegada da cracolândia
Apartamento na rua Guaianases com pertences de moradores que deixaram o endereço às pressas após a chegada da cracolândia - Danilo Verpa/Folhapress

A base de dados é fornecida pela gestão municipal e inclui informações sobre preços pagos em transações imobiliárias e os respectivos valores venais.

Entre julho e dezembro do ano passado, a rua com mais imóveis vendidos foi a Guaianases, onde 13 apartamentos foram negociados a R$ 2.337 o metro quadrado, em média, no trecho comprometido pela aglomeração de dependentes químicos. O valor é 15% menor em relação aos 11 apartamentos vendidos no mesmo período entre 2019 e 2021 no mesmo quarteirão, a R$ 2.734 o metro quadrado.

Um desses imóveis negociados no ano passado, um apartamento de 40 metros quadrados com um dormitório, foi vendido por R$ 261.365 em outubro de 2022 após ter sido adquirido por valor 71% mais alto (R$ 448.019) em fevereiro do ano anterior, quando a cracolândia ainda ocupava o entorno da praça Júlio Prestes, a cerca de um quilômetro de distância.

Houve queda do valor do metro quadrado também no trecho ocupado pela cracolândia da rua Helvétia, onde os imóveis comercializados em 2022 custaram 20% menos do que nos anos anteriores, em média. Na rua Vitória, foi constatada perda de 39% no valor do metro quadrado.

Na comparação com ruas vizinhas, a desvalorização dos imóveis nos demais quarteirões do mesmo setor também ocorreu, mas, em percentual menor do que os 27% referentes às ruas ocupadas pela cracolândia. Nesses endereços, o preço médio do metro quadrado negociado caiu 11% entre o segundo semestre de 2021 e o de 2022. Na cidade toda, a queda entre os dois períodos foi de 5%.

A região que engloba a cracolândia registrou o segundo metro quadrado mais barato entre os setores vizinhos em 2022 (R$ 3.649), atrás somente da área fiscal que corresponde a metade do Bom Retiro e parte do Pari (R$ 2.779).

Eder Ferragi, síndico de um condomínio localizado na rua Conselheiro Nébias, calcula que dos 70 apartamentos, ao menos nove foram desocupados a partir de agosto do ano passado, quando a cracolândia passou a ocupar parte da via. "Hoje temos seis apartamentos à venda que os proprietários não conseguem negociar por causa da desvalorização e da falta de comprador", diz.

No mesmo condomínio, ao menos 12 apartamentos estão vazios à espera de inquilinos ou da volta dos proprietários espantados pelo aumento da violência na região, de acordo com o síndico. "Tudo isso é consequência da dispersão da cracolândia."

Para o urbanista e professor do Instituto das Cidades da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Kazuo Nakano, a análise dos dados indica que não houve um movimento de especulação imobiliária impulsionado por grandes incorporadoras. "São pequenos investidores que enxergaram uma oportunidade de obter um imóvel na baixa de preços na esperança de que o entorno melhore no médio prazo", diz.

Mesmo assim, o movimento tem que ser observado com atenção do ponto de vista urbanístico porque se assemelha ao fenômeno de gentrificação ocorrido em Londres na década de 1960. "Não deixa de ser um processo de substituição de moradores", diz ele. "Pode representar o modelo clássico de gentrificação micro", continua, sobre o conceito em que uma determinada parte da cidade é valorizada, o que leva moradores de renda baixa a buscar outros bairros, quase sempre distantes do centro.

O urbanista prevê movimento de especulação imobiliária mais acentuado no centro da cidade a partir do momento em que se concretizarem projetos como a mudança da sede do governo estadual e a aprovação do PIU (Projeto de Intervenção Urbana) do setor central. As duas iniciativas representam incentivos a investimentos do mercado imobiliário no centro, segundo Nakano.

Mais de um ano após a operação policial na Princesa Isabel que dispersou o fluxo de usuários de drogas por várias ruas da cidade, o assunto tem motivado uma espécie de disputa entre moradores de diferentes partes do centro que se mobilizam para impedir a instalação da cracolândia próximo de suas residências e comércios.

Na semana passada, moradores dos prédios erguidos no entorno da praça Júlio Prestes organizaram uma corrente humana para impedir a chegada da aglomeração de usuários de drogas que estavam há cerca de dois meses em trecho de rua na Santa Ifigênia. A mudança foi reação ao protesto organizado por comerciantes da famosa rua de comércio de eletrônicos no dia anterior.

O prefeito Ricardo Nunes (MDB) propôs isenção do IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano) aos imóveis localizados nas ruas afetadas pelo tráfico de drogas. O projeto foi aprovado nesta semana em primeira votação na Câmara dos Vereadores e será avaliado em audiências públicas antes de ir à votação definitiva. A medida, porém, foi vista com receio por comerciantes diante da possibilidade de significar uma acomodação definitiva dos dependentes químicos nas ruas contempladas com a isenção.

A prefeitura incluiu a iniciativa em nota enviada à reportagem entre as medidas em curso para recuperar o centro da cidade. Foi citado também um programa que concede incentivos fiscais para estimular a requalificação de prédios particulares antigos, além de três parcerias público-privadas para viabilizar a construção de unidades habitacionais e infraestrutura de serviços. Estão previstas reformas de prédios históricos.

Procurada, a Secretaria da Segurança Pública afirmou que intensificou o policiamento na região central e os crimes de roubo e furto seguem tendência de queda há 18 semanas em comparação com o mesmo período no ano anterior. Está em curso também uma operação da Polícia Civil para identificar as pessoas que frequentam a cracolândia para definir o perfil dos usuários, segundo a secretaria.

A gestão do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) também foi procurada, mas respondeu que o assunto é de responsabilidade da prefeitura.

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