Noites do Rio têm rodas de samba que integram mulheres e LGBTQIA+

Novos grupos de samba alteram letras machistas e homofóbicas de canções famosas, privilegiam mulheres e oferecem apoio psicológico

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Rio de Janeiro

As andanças do compositor Eduardo Familião, 45, pelas rodas de samba que acontecem toda semana no Rio de Janeiro poderiam criar formas geométricas se fossem marcadas em um mapa.

No Pagode da Gigi, às quartas, na Lapa, Familião, às vezes, aparece no time de músicos, formado por homens e mulheres duas delas lésbicas. Às sextas, no Balaio Bom, na praça Tiradentes, o público da roda organizada por ele é formado majoritariamente por mulheres. Na mesma sexta, quando dá tempo, ele também passa na Casa do Nando, na rua Camerino, onde os donos afirmam que todos são bem-vindos, mas pessoas pretas têm privilégios.

"A rua é capaz de gerar coisas impactantes e está acontecendo um movimento cultural que a gente não tem como muito definir. Talvez no futuro", afirma Familião.

Rodas de samba do Rio, especialmente as realizadas nos espaços públicos, se tornaram pontos de convivência, acolhimento e segurança para pessoas pretas, mulheres e LGBTQIA+, segundo percepção de frequentadores e organizadores.

Músicos sentados ao redor de uma mesa. Duas mulheres em pé cantam viradas para o público, que acompanha
Dora Rosa e Thais Villela, líderes do grupo Mulheres da Pequena África, cantam juntas no aniversário do radialista Adelzon Alves, responsável por lançar e divulgar novos sambistas desde a década de 1960, como Cartola, Paulinho da Viola e Martinho da Vila - Eduardo Anizelli-7.set.2023/Folhapress

A percussionista Giselle Sorriso começou a fazer em 2021 uma roda de samba na comunidade Vila Aliança, em Bangu, onde foi criada. Hoje, o chamado Pagode da Gigi toca semanalmente na Lapa, sem microfones e com repertório de sambas antigos. O time fixo tem seis músicos, com duas mulheres pretas e lésbicas, Giselle entre elas.

"O Pagode da Gigi hoje é frequentado por pretos e pretas e esse público LGBTQIA+ cresce a cada edição. Elas entendem que ali não vão sofrer nenhum tipo de preconceito. Ali é o quintal da casa e elas poderão se divertir", diz a percussionista, também membro da banda da cantora Teresa Cristina.

As cantoras Dora Rosa e Thais Villela lideram o Mulheres da Pequena África, roda que acontece às quartas na Pedra do Sal, na Saúde, região portuária onde africanos sequestrados eram vendidos até o século 19 e que depois recebeu os primeiros terreiros de culto aos orixás, muitos comandados por mulheres.

O Mulheres da Pequena África diz estimular a presença feminina no samba. A roda convida mulheres sambistas de todo o Brasil para cantar e busca revisar letras machistas. Os versos originais que falam sobre submissão da mulher, quando cantados, são antes contextualizados.


"O samba está sendo uma ferramenta de empoderamento muito forte para falar de feminismo. Isso nada mais é do que o samba devolvendo à mulher o protagonismo que a mulher deu ao samba. Precisei cantar dez anos com homens para ter um dia com mulheres na Pedra", afirma Thais Villela, que tenta viabilizar a instalação de um espaço para crianças na Pedra do Sal, para que as mulheres mães possam deixar os filhos durante o samba.

"Somos uma roda feminina e feminista. Abordamos o feminicídio, o etarismo. Muitas mulheres vêm dizer: 'tinha medo de vir, mas agora me sinto segura'. Ouvir isso é o que faz a gente dar continuidade ao nosso trabalho. Mesmos que as mulheres ainda tenham medo de ir e voltar para casa", diz Dora Rosa.

Em 2021, após pedidos de músicos e produtores, o prefeito Eduardo Paes (PSD) regulamentou as rodas de samba em espaços públicos. O decreto criou um programa de desenvolvimento cultural da rede carioca de rodas de samba, com a intenção de criar um calendário para os eventos e otimizar a liberação da Vigilância Sanitária e Ordem Pública.

Atualmente, são cerca de 95 rodas de samba cadastradas na rede, segundo o músico Wanderso Luna, presidente da entidade.

Para Luna, os novos pagodes da cidade levaram vida para regiões de histórica presença negra, mas que estavam abandonadas. Na praça Tiradentes, Luna e colegas iniciaram em 2016 o Pede Teresa, na época em que a praça, segundo ele, vivia constantes roubos e arrastões.

"A praça Tiradentes sempre foi um território histórico, especialmente dos negros. Ali era onde ficavam os capoeiras, os violonistas. No final do século 19, quando fazem a praça, esse público que frequentava a praça é removido para a Cidade Nova. Hoje, nós negros voltamos a ocupar."

Os sambas na Pedra do Sal voltaram a partir de 2006, quando a região era vazia de eventos. Eduardo Familião esteve no grupo que pôs no calendário uma roda de samba fixa no local.

"Vi várias fases de revitalização cultural, mas o que a cidade vive hoje, em termos de samba e diversidade, nunca vi nada igual."

As rodas de samba que abraçam a diversidade não estão apenas no centro da cidade. No bairro da Penha, em uma rua de casas baixas, o Samba das Rosalinas acontece mensalmente, aos domingos, com a ideia abraçar a todos. No WhatsApp, um grupo de 140 mulheres frequentadoras da roda trocam experiências, dicas de saúde e apoio psicológico.

"O samba é um ambiente de corrente", diz Vivian Chaves, idealizadora do evento junto com a produtora Beta Assunção.

"Somos duas mulheres pretas e gordas e colocamos nossa cara no meio da roda. As pessoas nos veem se sentem mais livres. Construímos uma aldeia, um quilombo. Na roda, sua única obrigatoriedade é ser você mesmo sem pensar no outro. Temos muita gente se entregando a isso", completa Vivian.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.