Descrição de chapéu violência

Pouco importa se é milícia ou tráfico, crime age livre no Rio, diz sociólogo

Assassinato de médicos mostra como violência está ligada à estrutura do Estado

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São Paulo

O assassinato de três médicos em um quiosque na Barra da Tijuca, na zona oeste do Rio de Janeiro, reflete uma estrutura de lucro político e econômico a partir do controle armado há pelo menos 60 anos. É por causa disso que a autoria do crime —se por uma milícia ou por traficantes— não faz muita diferença para o sociólogo José Cláudio Souza Alves.

Segundo o professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, que estuda grupos armados há décadas, as mortes aconteceram em um território de organizações que só conseguiram crescer à sombra do Estado.

josé cláudio posa para foto, é negro, calvo, tem cabelos grisalhos usa camisa clara. ao fundo, salão de um prédio, e pórtico no meio, por onde passam algumas pessoas
Para o sociólogo José Cláudio Souza Alves, crime no Rio age com a conivência do Estado - UFRRJ no Facebook

Um eventual desfecho com a morte dos autores dos disparos, se comprovado, é uma resposta que serve, de acordo com Alves, para interromper debates e investigações sobre a violência cotidiana em cidades brasileiras.

"É provável que esse caso fique restrito ao sofrimento das famílias e às mortes de suspeitos", afirma o pesquisador. "Não se debate a conexão política, seja local ou nacional."

O que essas mortes dizem sobre a violência no Rio hoje?
O Rio de Janeiro tem uma tradição de convivência de grupos armados conectados à estrutura de segurança pública. O assassinato na Barra da Tijuca é fruto disso. Tráfico e milícia têm suas disputas entre si, e em cada grupo armado há presença, conivência, ganho e interesses de agentes públicos. Não só do Executivo, sobretudo da segurança pública, mas do Judiciário e do Legislativo. Esses grupos continuarão funcionando.

No que esse caso é diferente do assassinato da ex-vereadora Marielle Franco, em 2018?
Pareceu algo apressado. Antes das investigações apontarem para o Comando Vermelho, tive uma hipótese de que poderia ser um grupo miliciano que se valeu de mão de obra civil. Contrata-se um grupo mais frágil, por ser mais barato e ter domínio da região. Se forem descobertos, viram boi de piranha. São presos, processados ou assassinados, e fica por isso mesmo. É diferente do caso da Marielle, que envolveu o Escritório do Crime, muito mais sofisticado e articulado na estrutura policial, com um lastro de atuação mais organizado e de difícil identificação.

Uma linha de investigação é que um dos médicos foi confundido com um acusado de integrar milícia.
Isso não altera o que digo. Se houve equívoco, foi de um grupo armado dentro de um território em que ele opera com liberdade há muito tempo, estabelecendo limites territoriais e confronto com outros grupos. Não haveria essa atuação sem conivência e comprometimento da estrutura de segurança pública ali. Se é milícia ou tráfico, pouco importa.

Por que?
Tráfico e milícia se articulam, têm negócios e interesses comuns. Se confrontam, claro, as mortes são resultado dessas disputas. Notícias mostram que há suspeita de ter sido a mando do Comando Vermelho, ali é uma área em confronto. Mas se são grupos que estão ali há tempos, por que o Estado deixa rolar? Mortes são prejudiciais em parte, porque confrontos aquecem o mercado ilegal. Sobem os preços cobrados por segurança, arrego, suborno para o tráfico funcionar, gatonet e gás.

Mas o caso gerou pressão por investigações.
Obriga, sim, o Estado a fazer prisão e identificação de pessoas, o que pode ser que não ocorra, porque mataram quatro pessoas. Diria-se que o problema já está resolvido, pela lógica do ‘bandido bom é bandido morto’. Especialmente porque há muitas peças, como num jogo de xadrez. Além de milicianos, temos políticos locais e nacionais, como o [Jair] Bolsonaro, e o acusado de matar a Marielle, Ronnie Lessa. Mortes como as desses médicos serviriam para jogar luz sobre o tabuleiro, sobre como essas conexões se perpetuam. Mas é o contrário: vão fechar o foco na casa do tráfico e na perda dos três médicos. Não se debate a conexão política, seja local ou nacional.

Há uma mudança no perfil desses grupos armados, especialmente da milícia?
Há uma sofisticação, há seis ou sete décadas, porque vários grupos políticos se beneficiaram do controle armado, territorial, econômico e eleitoral desses grupos de extermínio. Se Lula (PT) transformou a mulher de um político com vínculos com milicianos em ministra do Turismo, é porque enxerga vantagem na relação com esses grupos.

O que se prende hoje são os pés-de-chumbo, a mão de obra fornecida pela miséria e a desigualdade, mas o governador Claudio Castro (PL) chamar de combate é balela. Em certo momento, o secretário de Polícia Civil do Rio de Janeiro era um envolvido com grupos armados e jogo do bicho. É a prova dessas conexões.

Mas como elas funcionam na prática?
Vou dar o exemplo de Wellington Braga da Silva, o Ecko, apontado como líder da principal milícia do Rio de Janeiro. A morte a um ano das eleições de 2022 fragmentou o grupo e foi o equivalente a abrir um edital. Aquele dinheiro ilegal movimentado desembocaria na campanha. Só se faz campanha onde os grupos permitem, só se mostra benfeitoria de um determinado candidato. Não é um mercado só de produtos, mas de vínculos políticos.

Na Baixada Fluminense, funcionários terceirizados começam a ser trocados um ano antes das eleições. Quem está fechado com o grupo dominante, fica. Isso vale para organizações sociais de hospitais, contratados de educação, e também emissão de licenças ambientais nas prefeituras, tudo é checado.

Para além do Rio, o que a repercussão dessas mortes significa para o resto do país?
É provável que esse caso fique restrito ao sofrimento das famílias e às mortes de suspeitos. Mas é importante dizer que há um destaque para o fato de os médicos serem inocentes. Se fossem traficantes ou milicianos mortos, deveriam estar sujeitos às mesmas leis, são tão humanos quanto eu e você. Mas essa história de bandido bom é bandido morto permite que se continue matando aos baldes e ganhando dinheiro com isso.

A participação da Polícia Federal e uma eventual federalização ajudariam?
Mas vão federalizar cada assassinato? Isso, por si, não é solução. Não se toca na estrutura do Rio de Janeiro por interesse político. A solução para este tipo de problema seria criar uma estrutura de segurança pública autônoma, ligada a outro projeto de Brasil. Que político vai fazer isso hoje?


RAIO-X
José Cláudio Souza Alves, 61
É professor titular do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Doutor em sociologia pela USP, é autor de "Dos Barões Ao Extermínio - Uma História Da Violência Na Baixada Fluminense"

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