Raridade em metrópoles, concessão de trem e metrô depende de subsídio e bons contratos

Especialistas em mobilidade ressaltam que poder público não se livra de custos com concessões, tema central da greve em SP

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São Paulo

Questão central no debate sobre a greve da última terça-feira (3) em São Paulo, a transferência total do transporte público sobre trilhos para empresas privadas foi a opção de poucas metrópoles no mundo. Entre especialistas, a discussão se divide entre aqueles que defendem uma regulação rigorosa e quem vê pouco motivo para as concessões.

Os funcionários do Metrô, da CPTM (Companhia Paulista de Trens Metropolitanos) e da Sabesp (Companhia de Saneamento de São Paulo) pararam em protesto aos planos do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) de repassar a gestão das empresas para o setor privado. Por esse motivo, o governo estadual classificou a greve como "ilegal e ilegítima", justificando que o tema foi discutido nas eleições e que o foro correto para manifestar oposição à ideia são as audiências públicas.

No mundo, Buenos Aires é um dos maiores exemplos de sistema privado, com todas as linhas concedidas. Por outro lado, algumas das principais capitais europeias, metrópoles na América Latina e cidades dos Estados Unidos adotam o modelo de gestão pública, mas existem experiências de PPPs (Parcerias Público-Privadas) pontuais, feitas para administrar linhas específicas ou com foco em projetos de expansão da malha viária.

A estação Santo Amaro, que atendes as linhas 9-esmeralda da CPTM e 5-lilás do metrô, durante dia de greve - Rubens Cavallari - 3.out.2023/Folhapress

O ponto central, segundo analistas que conversaram com a Folha, é a necessidade de subsidiar a operação pelo poder público. As receitas com o pagamento por passagens não são suficientes para bancar o alto custo de operação diária, salários, manutenção e investimento em manutenção.

Mesmo fontes alternativas de financiamento, como a publicidade nas estações, costumam ser insuficientes para complementar o custo de operação. Contratos do Metrô paulista com as empresas que operam as linhas 4-amarela e 5-lilás, por exemplo, preveem uma remuneração extra por passageiro —além do valor do bilhete— para garantir o equilíbrio financeiro da operação.

Por isso, alguns especialistas rebatem o argumento de que o setor público se livra dos custos ao repassar a operação ao setor privado. O investimento público se torna necessário mesmo que de forma indireta, através da empresa concessionária, para garantir a qualidade do serviço e a expansão.

"Não é claro se a gestão privada será melhor", diz Sérgio Lazzarini, professor do Insper e da Ivey Business School na Western University, no Canadá. Em seu livro "A Privatização Certa" (a partir de R$ 44,90 na amazon.com.br), ele diz que o sucesso de uma concessão depende da capacidade do governo de desenhar bons contratos. "O setor privado, com o seu objetivo de lucro e mais flexibilidade para alocar recursos, tende a ser mais operacionalmente eficiente, em termos gerais. Mas esses projetos têm outros objetivos sociais, como a necessidade de inclusão e qualidade do serviços."

Ele diz que bons contratos de concessão devem garantir investimento em qualidade e preços acessíveis para a população mais pobre. Ao mesmo tempo, a privatização só tem sucesso se os preços que remunerarem o investimento da concessionária forem satisfatórios. "Um balanço bem difícil mas necessário."

As exigências do contrato podem ter impacto direto no investimento da concessionária em áreas como manutenção, treinamento de profissionais, vigilância —que pode afetar a operação, pois é o que garante que os trilhos não sejam obstruídos por objetos— ou limpeza.

No caso das linhas de trem 8-diamante e 9-esmeralda, por exemplo, o Ministério Público paulista diz que a concessionária diminuiu o investimento em manutenção preventiva e que isso ocasionou um aumento nas falhas. A ViaMobilidade, por sua vez, afirma que tem feito investimentos e que inclusive vai aportar R$ 600 milhões a mais do que está previsto em contrato na reforma das linhas.

Em agosto, foi assinado um termo de ajustamento de conduta em que a concessionária se comprometeu a pagar uma indenização de R$ 150 milhões, após as duas linhas apresentarem uma série de problemas.

"Nem sempre o mais barato será o melhor", diz Sergio Avelleda, que foi presidente da CPTM e diretor de assuntos corporativos do Metrô. "Penso que os dois modelos têm vantagens e desvantagens. Grandes cidades no mundo têm metrôs e trens estatais e são exemplos de boa operação. Também temos operadores privados desenvolvendo excelente trabalho. O trabalho do privado pode ser tão melhor quanto a capacidade técnica de regulação dos contratos pelo poder público."

Segundo o coordenador de mobilidade urbana do Idec (Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor), Rafael Calabria, os governos de diferentes esferas no Brasil precisam debater novas fontes de financiamento público para o transporte.

"O transporte não é um serviço autossustentável financeiramente, não é rentável", ele diz. "Não dá para achar que o déficit é uma falha do sistema, ou que o poder público vai se livrar de um custo ao privatizar. Não vai se livrar."

Embora o déficit não seja desejável, ele argumenta que o prejuízo na empresa pública —no Metrô, o rombo foi de R$ 651 milhões nos seis primeiros meses deste ano— não é justificativa automática para a privatização, pois não há garantia que a operação privada vá saná-lo.

Calabria diz que nesse caso há o risco de se criar um ciclo vicioso que leva à derrocada: o corte de custos pode resultar na piora do serviço a atrasos, e com isso os passageiros trocam o trem e o metrô pelo carro. Com menos passageiros, o prejuízo financeiro se agrava.

No caso de São Paulo, o sistema já perdeu passageiros durante a pandemia e não se recuperou. O Metrô perdeu cerca de 24% dos passageiros —ou 1 a cada 4— na comparação de 2019 para este ano.

Segundo o pesquisador Daniel Santini, mestrando em planejamento urbano na USP e coordenador de projetos da Fundação Rosa Luxemburgo, vale a pena dividir a conta com toda a sociedade porque o transporte público traz benefícios para todos, não só para os usuários.

"Se tivermos redes de transporte coletivo subsidiadas e mantidas pela sociedade como um todo, haverá um efeito positivo que vai beneficiar até quem anda de carro", diz Santini.

Confira abaixo como é o modelo do transporte sobre trilhos de algumas das principais metrópoles do mundo.

Buenos Aires

Privado. A operação de toda a rede de metrô da capital é administrada pela empresa Emova, e há também uma linha de trem urbano concedida à Metrovías.

Cidade do México

Público. O metrô é administrado por um órgão público vinculado à prefeitura, com autonomia de gestão e um conselho administrativo vinculado ao governo.

Londres

Público. A administração metrô é parte de uma agência pública reponsável por vários setores do transporte metropolitano. Em 1998, o governo britânico fez uma PPP (Parceria Público-Privada) para custear a expansão e modernização de linhas, na qual uma agência pública mantinha a propriedade dos trens e estações, e duas empresas ficaram responsáveis por atrair investimento e operar as linhas. A PPP teve um colapso financeiro e o setor público assumiu as dívidas da empreitada em 2007. Outros modais, como ônibus, são concedidos a empresas.

Santiago

Público. O metrô da capital chilena é uma propriedade partilhada por dois acionistas, os dois públicos. O sócio majoritário é a Corfo, uma agência de fomento estatal, e o minoritário é o Fisco do Chile.

Nova York

Empresa pública e PPP. A NYCTA (Autoridade de Trânsito da Cidade de Nova York, na sigla em inglês), responsável por operar o transporte de metrô e trem, é uma "corporação de benefício público" instituída por lei. Ela faz parte de outra empresa pública, a MTA, que tem uma administração indicada pelo governador de Nova York e aprovada pelo Senado estadual.

Há uma linha privatizada na rede ferroviária de Nova York, a AirTrain JFK, que conecta o aeroporto internacional da cidade à rede do metrô. Ela é concedida a uma empresa pela Autoridade Portuária da região.

Tóquio

Público. A capital do Japão tem dois sistemas de metrô. Um deles —o Tokyo Metro— é operado por uma companhia de propriedade conjunta do governo metropolitano de Tóquio e do governo central. O segundo, chamado Toei, é de propriedade do governo nacional japonês.

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