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Pedro Borges e Petrônio Domingues

Antirracismo e a lógica do mercado: o caso Beto

A maior presença do mercado nas dinâmicas raciais do Brasil exigirá nova reflexão sobre o antirracismo

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Pedro Borges

Editor-Chefe da Alma Preta; mestrando em história pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas)

Petrônio Domingues

Doutor em história pela USP e professor da UFS (Universidade Federal de Sergipe), é autor de “Protagonismo Negro em São Paulo” e “Diásporas Imaginadas” (em coautoria com Kim Butler)

Em 1978, ativistas negros de São Paulo se indignaram com situações de racismo. Nesse ano, duas pessoas negras, Robson da Luz e Nilton Lourenço, foram mortas por policiais. As vidas ceifadas, somadas ao racismo sofrido por atletas negros no Clube Tietê, foram o estopim para a criação do Movimento Negro Unificado (MNU).

A organização inaugurou o movimento negro contemporâneo, assumindo um papel fundamental na denúncia de casos de violência policial. Não havia, para o MNU, outra possibilidade que não a queixa acerca da ação truculenta do Estado, assim como não existia qualquer sinal de abertura de discussão com o mercado e grandes corporações.

O grupo também via a denúncia da violência policial como um meio para romper com o silêncio em torno do "mito da democracia racial". A estratégia pareceu vitoriosa. Atualmente, esse mito não existe no Brasil como no passado. Há uma maior discussão na sociedade sobre o racismo.

manifestantes protestam em frente a mercado, eles ocupam rua e exibem diversos cartazes
Protesto pela morte de Beto Freitas em frente ao Carrefour, em Porto Alegre (RS) - Paula Sperb - 20.nov.2023/Folhapress

Entretanto não foram apenas os cidadãos que despertaram para a existência do racismo. O mercado entendeu ser necessário dialogar com essa agenda como forma de vender mais, conseguindo, em partes, articular programas de promoção da igualdade racial ou mesmo de diversidade como um produto.

O mercado, contudo, segue sua lógica. O país registra uma expansão da segurança privada, a ponto de existir mais vigilantes e seguranças do que policiais. O controle da violência do Estado foi compartilhado com o capital.

É nesse cenário que, em 19 de novembro de 2020, João Alberto Freitas foi espancado até a morte por seguranças da Vector, empresa de segurança privada contratada pelo Carrefour de Porto Alegre. Uma morte que poderia entrar para a estatística como as muitas outras produzidas no Brasil ganhou repercussão sui generis.

A resposta ao assassinato de Beto foi enérgica por parte do movimento negro. Em algumas cidades, onde organizavam marchas de consciência negra no dia 20 de novembro, os manifestantes agiram com contundência e atacaram unidades do Carrefour. O sentimento de revolta parecia estar inspirado na música "Capítulo 4, Versículo 3", dos Racionais MC's, especialmente no trecho "a fúria negra ressuscita outra vez".

O mercado, todavia, movimentou-se também. Dias depois do assassinato, em 25 de novembro, o Carrefour montou um Comitê Externo Independente, com personalidades representativas do debate racial no Brasil. Depois da resposta de marketing, necessária para acalmar os ânimos da sociedade, a rede de supermercados firmou um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) de R$ 115 milhões, o maior da história para crimes raciais, e passou a ser uma patrocinadora em eventos e projetos de combate ao racismo.

Isso impactou as concepções antirracistas dentro do movimento negro. A Coalizão Negra por Direitos criticou os acordos feitos com o Carrefour e demandou ações mais radicais, como judicialização da empresa, retirada do Carrefour do local onde Beto foi assassinado, enquanto outras pessoas, inclusive as participantes do Comitê Externo Independente, acreditavam na necessidade de fazer a empresa sofrer com ônus financeiros diante do que ocorreu. A divergência até gerou um racha entre as organizações do movimento negro, com um afastamento da Coalizão Negra por Direitos com demais instituições do campo.

O caso Carrefour, ou João Alberto Freitas, abriu uma nova indagação para o movimento negro brasileiro. Qual o caminho para enfrentar o racismo? Diante da violência, muitos do MNU de 1978 acreditaram em um projeto marxista e revolucionário, sem diálogo com o mercado e com uma visão de transformação radical do Estado. Era uma geração influenciada pelos processos de independência no continente africano, Panteras Negras nos EUA, lutas armadas em países da América Latina.

As respostas atuais foram outras, à luz de um contexto histórico diferente, de outro estágio do capitalismo. Paira para muitos a dimensão de impossibilidade das utopias, de uma vitória ad eternum do capital, mesmo para grupos historicamente marginalizados e que já sonharam com outras saídas para o problema.

O mercado passará a ser cada vez mais presente nas chamadas relações raciais no Brasil. Cabe ao movimento e à sociedade debater se há o desejo de se relacionar com o mercado, de que maneira e qual o projeto de nação arquitetado pelas organizações antirracistas no país. Mais do que isso, fica a questão do que é ser antirracista.

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