Ministério da Igualdade Racial hostiliza homens negros, diz sociólogo

Henrique Restier, especialista em masculinidades negras, diz que protagonismo de mulheres negras em pasta do governo federal é ideológico

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São Paulo

Em suas redes sociais, o sociólogo Henrique Restier se divide entre publicações da rotina das duas filhas, Manuela e Ana Flor, e reflexões sobre o lugar ocupado pelo homem negro no Brasil.

Natural de Niterói (RJ), o doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp/Uerj) usa o espaço para levantar questões como "o Ministério da Igualdade Racial está se tornando o Ministério das Mulheres Negras?" ou "e eu não sou um homem?" —neste caso, parafraseando Sojourner Truth, abolicionista e ativista afro-americana que fez o famoso discurso "e eu não sou uma mulher?" para mulheres brancas, em 1851.

Henrique Restier próximo ao parque Madureira, na zona norte do Rio de Janeiro - Eduardo Anizelli/Folhapress

0 professor de sociologia no Cefet-RJ (Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca) e especialista em masculinidades negras faz críticas ao papel desempenhado pelo Ministério da Igualdade Racial, comandado por Anielle Franco, naquilo que chama de "protagonismo das mulheres negras meramente ideológico" ou "hostilidade aos homens negros".

Seu objetivo é gerar desconforto e colocar homens negros como centro de políticas públicas. Como justificativa, o pesquisador traz estatísticas relacionadas ao encarceramento em massa, violência policial, expectativa de vida e acesso à educação. Nos comentários de suas publicações, feitos em sua maioria por homens negros, há elogios e agradecimentos pela coragem.

Em entrevista à Folha, Restier analisa a atual gestão do ministério e explica os motivos pelos quais discorda da ativista americana Angela Davis. Ele também defende o protagonismo de homens negros no combate ao racismo no Brasil.

Qual o lugar ocupado por homens negros no Brasil hoje?
Essa é uma discussão que não tem sido feita, do meu ponto de vista, da maneira que deveria. Grande parte dos trabalhos hoje de relações raciais fala das pessoas negras em geral ou então traz o gênero feminino, as mulheres negras. Dificilmente tem estudos, pelo menos no meu campo —da psicologia e da ciência social— sobre o gênero masculino.

Se você pega o indicador socioeconômico ligado aos quatro grupos principais —mulheres e homens brancos e mulheres e homens negros—, o homem negro tem os piores índices educacionais, de evasão escolar, de expectativa de vida, de violência. Se você pega a questão da renda, o homem negro está em penúltimo lugar. Grande parte do trabalho desempenhado por nós é perigoso, arriscado e insalubre.

O que defendo é que os homens negros sejam uma categoria de análise, uma categoria que tenha legitimidade para ser estudada.

O sr. é um grande crítico do MIR (Ministério da Igualdade Racial). Por quê?
Minhas reflexões em torno do MIR se circunscrevem à falta de uma reflexão séria em torno do homem negro. O que se reflete na nossa pouca presença nas instâncias decisórias, na formação das equipes que estão pensando as políticas afirmativas e, portanto, na nossa ausência como foco dessas políticas.

Por outro lado, as mulheres negras não só estão nesses espaços como têm tido primazia nas ações desenvolvidas pelo MIR, inclusive com políticas exclusivas, sem a devida contrapartida para os homens. Por que os homens negros não são vistos como um grupo legítimo para ações afirmativas, visto que diversos indicadores socioeconômicos apontam sérios e, muitas vezes, trágicos desafios em nossas trajetórias de vida?

Em nome de uma suposta paridade de gênero intraracial, os homens negros têm sido, no mínimo, negligenciados pelo MIR e, no limite, hostilizados, como já falado sobre a proposta de alteração da Lei 12.990/14, que expropria direitos dos homens negros transferindo-os para as mulheres negras, um escândalo, sem precedência histórica. [Ele fez referência ao projeto que aumenta de 20% para 30% o percentual de vagas de concursos públicos destinadas a candidatos pretos ou pardos e que metade dessa reserva deve ser ocupada por mulheres negras.]

Para nós, homens negros, isso soa mais como um corporativismo de gênero, e uso do poder institucional em benefício próprio, do que efetivamente de equidade de gênero. É um protagonismo das mulheres negras meramente ideológico.

Há uma ideologia que privilegia mulheres negras?
Há uma perspectiva que avalia as mulheres negras como a base da pirâmide social. Isso virou um senso comum, inclusive, outro jargão famoso da Angela Davis também que diz "quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta".

Essa é uma visão um tanto messiânica da política, em que um determinado grupo, pelo seu histórico de opressão, estaria predestinado ou seria o escolhido para mudar o mundo à sua volta trazendo a redenção social. Isso não se sustenta historicamente. No entanto, são essas ideias amplamente disseminadas que, agregadas aos estereótipos acerca do homem negro, têm colaborado para uma insensibilidade política em torno de nosso lugar social e potencialidades transformadoras.

Não acredita que avanços conquistados por mulheres negras significam avanços para homens negros também?
Não disse que o avanço das mulheres negras não significa nada para os homens negros. Significa muito. O que acontece é que precisamos debater esse gênero [masculino] que é o mais atingido por essas violências. O homem negro não é tematizado quando é vulnerável. A gente tem que supor. Mas política pública não vive a base de suposição.

Considera equivocada a ideia defendida por Angela Davis sobre as mulheres negras estarem na base da pirâmide social?
O que é estar na base da pirâmide? O que Angela Davis está falando? É a renda? É a educação? Não estar nos espaços de decisão do mundo corporativo?

Se estar na base da pirâmide social é ter menos acesso ao direito à vida, os homens negros estão na base da pirâmide, porque eles são os que mais morrem, têm a menor expectativa de vida.

Não quero competir, quem está na base, quem está em cima. Quero me encontrar com os fatos, com os fenômenos sociais. Por quê? Porque, com isso em mãos, a gente tem mais lucidez para resolver as questões da população negra.

Desde a Marcha das Mulheres Negras, em 2015, o protagonismo delas na luta antirracista só cresceu. Os homens negros também estão bem organizados?
Boa pergunta. As mulheres negras têm entidades voltadas para elas há décadas, como Geledés e Criola. São instituições pensando gênero e raça. Ou seja, não tem concessão nenhuma. Tem ativismo, né? Por isso a minha insistência de que os homens negros precisam ser generificados e racializados, porque eles têm certas especificidades.

Os feminismos branco e negro e o mulherismo trouxeram o gênero como forma de luta. O gênero masculino serve como objeto de crítica ao patriarcado, ao machismo etc., mas também pode ser uma ferramenta de demanda política.

Nossos destinos estão cruzados. A gente não avança se homens e mulheres negras não avançarem. Mas as mulheres negras estão estabelecidas. Elas já se legitimaram como sujeito do debate. O homem negro, não. A gente ainda supõe o que é o homem negro. Quero sair da suposição. Quero existir como sujeito.

Tem receio de seu discurso parecer ressentido em relação às mulheres negras?
Minha função como pesquisador do campo é fazer a crítica ao país —pode ser a uma ideia hegemônica ou a uma ideia de vanguarda, entendeu? O que acontece nos movimentos sociais negros é que parte dos homens negros se sente silenciada, com receio de, de repente, falar uma coisa e ser cancelada, ser chamada de machista porque está fazendo uma crítica que acha pertinente.

No limite, meu objetivo primeiro e final é humanizar os homens negros. Eu ainda vejo os homens negros sendo representados como caricaturas coloniais. A gente ainda é visto como um grupo moralmente degenerado, um grupo amorfo degenerado.


Henrique Restier da Costa Souza, 45

Nascido em Niterói, é sociólogo, mestre em relações étnico-raciais pelo Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (Cefet-RJ) e doutor em sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp/Uerj). É professor de sociologia do bacharelado de Línguas Estrangeiras Aplicadas às Negociações Internacionais, também no Cefet. Desenvolve pesquisas no campo de estudos de homens e masculinidades e relações raciais.

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