Descrição de chapéu aniversário de São Paulo

Aos 470, São Paulo redefine seus cartões-postais com resgate da memória negra

Achados arqueológicos impulsionam movimento que revisita história de Bixiga e Liberdade, antes mais lembrados pela herança italiana e japonesa

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Capela Nossa Senhora dos Aflitos, um dos marcos da história negra em São Paulo, coberta pelas luminárias da Liberdade Rubens Cavallari/Folhapress

São Paulo

A história está na pele de quem vive na vizinhança ao norte da avenida Paulista, mas foi preciso cavar fundo para que São Paulo chegasse aos seus 470 anos formalmente reconhecendo aquele território como também pertencente aos pretos cujos ancestrais foram forçados a trabalhar na construção da cidade.

Escavações da futura estação do metrô no coração do Bixiga, área do distrito Bela Vista tradicionalmente lembrada pela imigração italiana, abriram caminho para que se encontrassem provas de um símbolo da resistência de africanos escravizados, o Quilombo Saracura.

Imagem aérea mostra escavações entre prédios
Escavação da estação do metrô próximo à praça 14 Bis, na Bela Vista; onde funcionava a sede da Vai-Vai, achados arqueológicos comprovam a existência do Quilombo Saracura - Rubens Cavallari/Folhapress

Foi justamente no subsolo de outro marco da ancestralidade de seus moradores, a sede da escola de samba Vai-Vai –desapropriada e demolida para dar lugar à estação–, onde foram achados em 2022 utensílios e peças de vestuário dos quilombolas.

"Sempre foi ressaltado o aspecto de bairro italiano, mas hoje estamos encontrando suas raízes", diz a jornalista Luciana Araújo, integrante do movimento Mobiliza Saracura/Vai-Vai. "A escavação está trazendo materialidade à realidade conhecida entre os moradores", diz.

Alessandro de Lima, arqueólogo que conduziu estudos no centro histórico da cidade, foi responsável por avisar os moradores dos achados. Ele diz que cachimbos e contas de vidro estão entre objetos que mais facilmente caracterizam a diáspora africana.

Descobertas que desencadearam mais do que o reconhecimento histórico. Pela primeira vez, graças à mobilização gerada pela confirmação da existência do quilombo, as leis urbanísticas mais importantes para a cidade foram alteradas com intuito de garantir o direito de uma população a um território.

Nas revisões realizadas no ano passado, o Plano Diretor e a Lei de Zoneamento passaram a considerar que cabe ao poder público estabelecer políticas para garantir o perfil racial do bairro.

É uma tentativa de combater a substituição de habitações acessíveis aos pobres pelos caros apartamentos que já começam a surgir no entorno da futura estação do metrô, explica a mestre em planejamento urbano Gisele Brito, do Instituto de Referência Negra Peregum.

"Oferecer imóveis caros que atraem comércio e serviços que nada têm a ver com a população residente é um processo de banimento racial que não deveria ser naturalizado", diz Brito.

A revisão da história da ocupação do Bixiga encontra precedente recente em outro bairro da região central.

Em 2018, a demolição de um sobrado para a construção de um centro de compras por empresários chineses na Liberdade acidentalmente abalou a estrutura da capela dos Aflitos, construção remanescente do cemitério de mesmo nome onde pessoas escravizadas eram sepultadas no século 19.

Atentos à possibilidade de que a obra estaria desrespeitando a lei que prevê a investigação arqueológica em locais de interesse histórico, frequentadores da capela acionaram órgãos de preservação de patrimônio.

Foram encontradas nove ossadas no terreno, das quais duas carregavam contas de vidro azul típicas de cultos de matriz africana, indicando que aqueles eram vestígios humanos de escravizados.

Última parada do itinerário do sistema de criminalização, punição e morte da época, o cemitério dos Aflitos funcionava nos fundos do triângulo demarcado pelas ruas 15 de Novembro, São Bento e José Bonifácio, área mais urbanizada onde a cidade se concentrou antes da expansão gerada pelo ciclo econômico do café.

No que então era a periferia do centro paulistano também estavam a Casa de Câmara e Cadeia, onde pessoas negras eram julgadas e condenadas (atual praça João Mendes), o pelourinho, para a punição pelo açoitamento (hoje é largo Sete de Setembro) e a forca, destinada aos sentenciados à morte, na atual praça Liberdade África-Japão.

Escritor e estudioso da arquitetura da São Paulo escravocrata, Abilio Ferreira é quem descreve essa relação entre o urbanismo da cidade e seu sistema opressor.

Um dos coordenadores do movimento dos Aflitos, Ferreira conta que no mesmo ano de 2018 em que as ossadas foram encontradas, o acréscimo do nome do país nipônico à praça da Liberdade inflamou o movimento que reivindicava o reconhecimento da presença africana.

"Até aquele momento, a Liberdade tinha uma história pacificada como sendo exclusivamente ligada à imigração oriental, não se discutia a origem do bairro", diz o escritor.

Desapropriado pela prefeitura, o terreno do antigo cemitério receberá um memorial. A articulação para que isso acontecesse contagiou a mobilização nos arredores da futura estação do metrô no Bixiga, coincidentemente refazendo o caminho daqueles que buscavam a liberdade, segundo Ferreira.

Relatos históricos apontam que escravizados fugitivos do centro urbano da São Paulo colonial se embrenhavam na mata às margens do rio Anhangabaú para achar refúgio no quilombo perto do córrego Saracura.

Ferreira afirma que, apesar de emblemática, a revisitação à história desses bairros centrais da capital paulista é apenas amostra de um passado apagado.

"Escavações que resultaram em achados arqueológicos ocorreram em São Miguel Paulista, na Sé, no largo da Batata, mas pouca importância foi dada", comenta. "O que temos agora são grupos mais articulados e conscientes e uma prova disso é que estamos falando sobre este tema no aniversário de São Paulo."

Guilherme Soares Dias, fundador do Guia Negro, ressalta que a conexão entre a capital paulista e o continente africano vai além da revelação histórica. Ele destaca o também central bairro da República como exemplo disso.

No centro de compras conhecido como Galeria do Reggae, a África está presente nos sotaques, vestuários e penteados. Mais de 70% das lojas pertencem a imigrantes africanos, conta a síndica Lenice Garrido.

O lugar, porém, passa longe de ser reconhecido como ponto turístico devido à condição irregular de permanência no país de parte dos ocupantes da galeria. Evitar os andares mais altos foi o conselho do segurança quando a reportagem da Folha esteve no local. "O clima pode ficar hostil", avisou o funcionário.

Dias lembra, porém, que imigrações têm histórico conturbado e que o racismo entra como componente na avaliação feita sobre novos grupos de pessoas pretas que chegam ao país. "Enquanto outras comunidades têm seus aspectos positivos ressaltados, a imigração africana continua a ser retratada por aspectos negativos", diz.

Mistura cultural transforma Bom Retiro em bairro descolado

Enquanto uma parte da cidade revisita o passado, novas imigrações misturam culturas e acrescentam sabores a outro canto central da capital.

Exemplo da diversidade paulistana, o Bom Retiro ganhou fama de bairro descolado. Fica fácil entender o motivo ao caminhar numa mesma calçada e achar diferentes estabelecimentos que servem comida coreana, chinesa, grega, italiana, árabe e colombiana, entre outras.

Atrativo aos imigrantes que buscavam oportunidade de enriquecer nas atividades ligadas à indústria têxtil do século passado e que ainda se faz presente, o Bom Retiro inicialmente chamou a atenção de comerciantes judeus e árabes. Asiáticos, em especial os sul-coreanos, seguiram esse caminho à procura de prosperidade.

Embora tenha perdido força, o ramo têxtil segue puxando estrangeiros, agora da vizinhança sul-americana. Paraguaios e bolivianos, principalmente, integram o operariado atual.

Cozinhando pratos tradicionais para suas respectivas comunidades, imigrantes construíram a base da diversificada cena gastronômica do bairro.

"Esse movimento começa com a necessidade de manter laços culturais", diz o arqueólogo Alessandro de Lima, que é morador do bairro.

Essa é a história do Dabok Comida Coreana, conta a proprietária Fany Lee, 29. De família sul-coreana e nascida no Paraguai, ela chegou ao Brasil ainda criança, quando seus pais buscavam faturar no comércio têxtil.

"Minha mãe sempre cozinhou comida coreana para nós e só depois que isso virou um negócio", conta Lee, que comemora o forte aumento do interesse brasileiro pelo frango frito empanado e outros pratos típicos desde a pandemia.

"As pessoas ficaram em casa e passaram a ver os doramas, as novelas coreanas, e quiseram experimentar aquela comida que as personagens comem com tanto gosto."

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