Um ano após tragédia em São Sebastião, ações de governos atrasam e não eliminam riscos

OUTRO LADO: prefeitura diz que atraso ocorreu devido à necessidade de conclusão de estudos; gestão Tarcísio afirma ter investido mais de R$ 1 bilhão no litoral norte

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Imagem aérea mostra topo das montanhas, com o mar ao fundo

Morro na praia Barra do Sahy, em São Sebastião (SP), onde cicatrizes foram abertas na mata após deslizamentos causados pelo temporal de 19 de fevereiro de 2023 Rubens Cavallari/Folhapress

São Sebastião (SP)

A água calma e clara na desembocadura do rio estreito que dá nome à Barra do Sahy em nada lembra o mar tingido de lama pelos deslizamentos provocados pela tempestade que há um ano caiu sobre a costa sul de São Sebastião, no litoral norte de São Paulo.

Mas a sensação de normalidade é desfeita pelos relatos de depressão, empobrecimento, medo e desconfiança feitos pelos moradores, muitos ainda em áreas de alto risco, que conversaram com a Folha na semana que antecedeu o Carnaval deste ano.

Apesar de bilionária, a resposta do poder público à crise acumula atrasos, recuos e desacertos quanto a oferta de moradia, desocupação de locais sujeitos aos efeitos de eventos climáticos extremos e conclusão de obras preventivas.

Imagem mostra trator ao fundo com placa de rota de fuga à frente e aviso de trânsito de máquinas pesadas
Na Vila Sahy, que concentrou maioria das mortes em São Sebastião, prefeitura ergue muros de contenção enquanto moradores permanecem em áreas de risco - Rubens Cavallari/Folhapress

Na madrugada de 19 de fevereiro de 2023, mais de 600 milímetros de chuva desabaram sobre a cidade. O maior volume já registrado em uma única precipitação no país dissolveu encostas na Serra do Mar que caíram sobre estradas e casas, deixando 64 mortos na cidade. Horas antes, uma mulher havia morrido durante o temporal em Ubatuba, município litorâneo mais ao norte.

No dia seguinte, reuniram-se no centro de São Sebastião o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o governador Tarcísio de Freitas (Republicados) e o prefeito Felipe Augusto (PSDB) para prometer recursos para obras emergenciais e soluções para a ocupação irregular das áreas de risco na cidade.

A ação mais rápida apareceu no desbloqueio e na reconstrução de estradas. Desmoronamentos haviam interditado a rodovia Rio-Santos, isolando áreas com mais vítimas. Helicópteros militares e civis eram o único meio seguro de levar ajuda.

O socorro por barco era desaconselhado pela Guarda Costeira devido ao mar virado, ordem ignorada por barqueiros particulares que abasteciam comunidades afetadas com mantimentos e medicação logo após o temporal.

Foi com a ajuda de donos de pequenas embarcações que, na ocasião, a Folha conseguiu chegar à Vila Sahy, o bairro no sopé da serra ocupado majoritariamente por trabalhadores que prestam serviço em pousadas, restaurantes e casas de veraneio mais próximas ao mar. Morreram no local 52 pessoas. Também ocorreram óbitos em Juquehy (10), Baleia Verde (1) e Maresias (1), segundo a Prefeitura de São Sebastião.

É no ponto crítico da tragédia que ficam evidentes os obstáculos para a conclusão de obras estruturantes que podem preparar uma cidade para eventos climáticos extremos. Liderada pela gestão Tarcísio, a transferência de moradores para 704 unidades em dois conjuntos habitacionais nos bairros Baleia Verde e Maresias é, ao mesmo tempo, uma das mais avançadas ações de enfrentamento ao problema e também o mais visível exemplo de dificuldade na gestão da crise.

O atraso de seis meses para a conclusão dos dois conjuntos da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo) —o de Baleia Verde será inaugurado nesta segunda (19)—, porém, nem é o problema central. Obras desse porte levam até 36 meses, diz o governo. A questão é que muitos dos residentes da Vila Sahy não foram convencidos a trocar seus imóveis pelos apartamentos e permanecem na encosta. Querem ter prejuízos indenizados após anos pagando impostos para viver ali.

Renato de Jesus, 54, conta que durante duas décadas gastou quase todo o seu salário de vigilante para concluir a casa de quase 200 metros quadrados com planta devidamente registrada na prefeitura, segundo ele. O imóvel subdividido em quatro rendia R$ 4.000 por mês em aluguéis.

Os inquilinos foram embora. A luz cortada há um ano não foi religada, e a energia agora vem de uma ligação clandestina, intermitente. Mas o IPTU deste ano, no valor de R$ 1.500, já chegou, diz. "Agora que eu poderia trabalhar um pouco menos, aconteceu isso. Era para ser minha aposentadoria."

A gestão de Felipe Augusto alega que o IPTU é gerado no momento em que o morador faz o registro técnico do imóvel na prefeitura e que a energia somente agora poderá ser religada, com a desistência do governo do estado de uma ação judicial que pedia autorização para a demolir quase 900 casas no bairro.

A análise técnica para um projeto de urbanização da Vila Sahy —que custou R$ 4,1 milhões, sendo R$ 2,8 milhões pagos com recursos arrecadados em nome das vítimas pela ONG Gerando Falcões e R$ 1,3 milhão pelo estado— frustrou a comunidade ao apontar que quase 80% das residências do bairro teriam de ser destruídas.

Foi com base nesse estudo que a gestão Tarcísio tentou levar o projeto adiante, com a ação judicial, mas recuou diante da resistência dos moradores, apoiados pela Defensoria Pública do Estado.

No final do ano passado, quando anunciou a retirada da ação, o governo também desistiu de cobrar pelas novas moradias de quem, comprovadamente, foi vítima de deslizamento ou alagamento. Até então, a gestão Tarcísio insistia em aplicar a regra da CDHU que requeria o pagamento mensal de parcela equivalente a 20% da renda familiar.

Se tomada mais cedo, essa decisão poderia ter aumentado a adesão ao programa habitacional, afirma Evanildes Alves dos Santos Andrade, 57, presidente da Amovila, a associação de moradores do bairro. "Quando a CDHU avisou que cobraria pelas moradias, isso gerou revolta", conta. "Sabemos que o risco existe, mas é preciso ouvir as pessoas", diz.

O perigo naquela encosta é conhecido pelas autoridades —ou deveria ser. O mapeamento produzido para as discussões do Plano Diretor de São Sebastião, que é do início dos anos 2000 e foi revisado recentemente, aponta o trecho que desmoronou na Vila Sahy com níveis 4 e 5 para deslizamentos, os mais elevados da escala. Mas o problema se espalha pelo município.

Ao sobrepor o mapa do zoneamento da cidade com o de áreas de risco, é possível identificar cerca de 25 grandes territórios com algum grau de perigo para alagamento ou desmoronamento demarcados como ZEIS (Zonas Especiais de Interesse Social), o que indica que essas regiões provavelmente estão ocupadas.

Pesquisador do impacto das mudanças climáticas da USP, o engenheiro civil Ivan Maglio coordenou os estudos do Plano Diretor do município. O projeto identificou áreas para a construção de ao menos 17 mil moradias, o suficiente para atender as cerca de 7.000 famílias que convivem com o risco, mas ele lamenta que somente após a tragédia algumas obras pontuais tenham sido iniciadas. "As ações que estão em curso são necessárias, mas estão tratando o risco onde ele já se concretizou", diz.

Recentemente, a Prefeitura de São Sebastião começou a construir barreiras de contenção próximas a encostas que desmoronaram na Vila Sahy e iniciou escavações de grandes áreas para a instalação de tubos de drenagem com raio de 1,5 metro que levarão ao rio Sahy a água que costuma ficar represada na margem da Rio-Santos oposta à praia e perto dos morros, onde mora a população mais pobre.

Imagem mostra operário dentro de um túnel escuro
Operário trabalha dentro da escavação para instalação de tubos de drenagem que levarão água que se acumula na Vila Sahy e na Baleia Verde para o rio Sahy, em São Sebastião - Rubens Cavallari/Folhapress

Além da Vila Sahy, a obra vai atender o bairro vizinho Baleia Verde, onde está um dos conjuntos habitacionais construídos emergencialmente pela CDHU.

A drenagem é apoiada por moradores dos bairros beneficiados, segundo Aleandre Vieira da Silva, 44, líder comunitário da Baleia Verde. Mas também traz desconfiança para quem vive mais perto da praia.

Segundo o ICC (Instituto Conservação Costeira), organização ambiental local, a prefeitura não apresentou relatórios de impactos que a obra trará ao meio ambiente e, por isso, avalia ingressar na Justiça para embargar o projeto.

"Se este for o único jeito de evitar enchentes, não somos contrários, mas queremos conhecer o impacto", diz Bettina Grajcer, conselheira do ICC.

O rio Sahy é um curso d'água raso envolto por uma APA (Área de Preservação Ambiental) que possui casas de veraneio nas suas extremidades.

Com as obras de drenagem, o canal terá de ser dragado e aprofundado. Não é só a alteração da paisagem que incomoda moradores da Barra do Sahy e do canto ao fundo da praia da Baleia, onde o início das obras já vem produzindo alguns alagamentos. Eles desconfiam também que um dos objetivos seja tornar o rio navegável, o que permitiria a construção de marinas para atender condomínios de alto padrão em construção ou em projeto.

A gestão do prefeito Felipe Augusto não respondeu sobre as marinas, mas explicou que antes do evento climático o rio tinha cerca de 1 metro de profundidade e era navegável para embarcações pequenas. Com a catástrofe, passou a ter cerca de 30 centímetros. "O desassoreamento prevê a retomada de sua profundidade real", diz.

A prefeitura ainda alega que a demora para o início das obras de drenagem e contenção de encostas ocorreu devido à necessidade de conclusão de estudos e projetos.

Já gestão Tarcísio de Freitas afirma ter investido mais de R$ 1 bilhão em ações no litoral norte, considerando obras, moradias, linhas de crédito e medidas para recuperação da economia, além de ter encaminhado mais de 480 toneladas de donativos para famílias vulneráveis e desabrigadas.

Também procurado para detalhar as ações do governo Lula no litoral norte, o Ministério da Integração e do Desenvolvimento Regional não havia respondido até a publicação deste texto.

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