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Chuvas no Sul

Lições do tsunami do Chile para as enchentes no Rio Grande do Sul

Aspectos como moradia e destruição do pequeno comércio têm o risco de, com o tempo, serem fundidos com elementos ligados à pobreza e à precariedade habituais

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João Paulo Charleaux

Jornalista e autor de “Ser Estrangeiro – Migração, Asilo e Refúgio ao Longo da História”, trabalhou no Comitê Internacional da Cruz Vermelha, viveu no sul do Chile e cobriu o tsunami e o terremoto como correspondente estrangeiro

São Paulo

Em fevereiro de 2010, o Chile viveu uma das maiores tragédias de sua história: um terremoto de 8,8 graus de magnitude provocou um tsunami que varreu boa parte da costa centro-sul do país. A combinação dos dois eventos climáticos extremos deixou mais de 500 mortos e um cenário de devastação semelhante ao que vive hoje o Rio Grande do Sul.

A situação chilena talvez tenha pontos de reflexão válidos para o Brasil. Estive no ponto zero do desastre chileno 12 dias depois do ocorrido, para tratar de entender a situação do país às vésperas da posse de Sebastián Piñera, o primeiro presidente de direita a governar o Chile desde o fim da ditadura de Augusto Pinochet, em 1990

Voltei à mesma zona um ano depois, para ver de perto o processo de reconstrução. Nas duas ocasiões, vi os seguintes pontos comuns com o que ocorre agora no Brasil: a amplitude da devastação, a perturbação profunda na logística de rodovias e de aeroportos, a extinção de um número muito grande de moradias, a falência do comércio e a extinção de empregos, com impacto imediato e de longo prazo na economia e, portanto, na possibilidade de recuperação plena da região afetada; um temor do aumento da criminalidade ligada a saques a residências e ao comércio local e, por fim, a preocupação com o padrão de reconstrução de uma zona que sabe agora do risco de voltar a viver algo semelhante no futuro.

Forças de segurança, da PRF e da Força Nacional atuam no patrulhamento de barco e no apoio aos resgates no bairro Mathias Velho, em Canoas, alagado pelas enchentes no Rio Grande do Sul
Forças de segurança, da PRF e da Força Nacional atuam no patrulhamento e no apoio aos resgates no bairro Mathias Velho, em Canoas, alagado pelas enchentes no Rio Grande do Sul - Pedro Ladeira/Folhapress

O que o Brasil tem hoje, mas o Chile não tinha então, são as redes sociais e as fake news —ambos fenômenos ainda incipientes em 2010. No Chile, o principal meio de difusão de informações de interesse público durante a tragédia eram as rádios, que passaram a transmitir informação prática às vítimas, sobre como se proteger, onde encontrar ajuda, como agir.

As rádios são uma via de mão única para difundir informação clara, precisa, útil e confiável em momentos de desespero. O sinal pode ser captado por aparelhos pequenos, portáteis e baratos, que funcionam a pilha e prescindem de eletricidade —e a energia elétrica é um verdadeiro luxo, um item indisponível ou muito escasso em locais afetados por esses fenômenos extremos; as pilhas, nem tanto. Confiar apenas na internet e em celulares, que dependem de eletricidade, pode ser uma aposta insuficiente de comunicação pública em situações extremas. Não é necessário que toda casa tenha um radinho, mas todo hospital, todo posto de polícia ou de bombeiros, toda escola e toda farmácia podem ter, como parte de um kit emergencial.

Quando voltei ao sul do Chile, um ano depois da tragédia, constatei que o problema mais persistente foi o da moradia. Para remediar a devastação de milhares de casas e de apartamentos, o governo construiu como pôde milhares de moradias emergenciais. Havia quadras inteiras feitas de casas de madeira, com teto de zinco e sem isolamento térmico, numa zona em que as temperaturas ficam facilmente negativas. Nos pontos mais críticos e precários, algumas pessoas viviam ainda sob lonas plásticas, nos chamados acampamentos, esperando pela concretização da promessa de destinação a um novo lar.

As pessoas que entrevistei em Temuco e no porto de Talcahuano tinham na memória relatos de parentes mais velhos, que contaram histórias sobre o famoso terremoto de Valdivia, de 1960, quando 1.600 pessoas morreram. A tragédia de 60 anos atrás mudou a geografia de uma parte do sul do Chile e provocou cicatrizes que são reabertas a cada nova catástrofe, como a de 2010. Algumas lições são aprendidas. Outras, esquecidas. Parte da reconstrução se dá em melhores termos. Parte nunca acontece.

No aniversário de um ano da tragédia, Piñera foi à zona afetada. Ele disse que tinha cumprido 50% da tarefa de reconstrução. A outra metade era justamente a das moradias. Um grupo de pessoas cercou o presidente na saída de um evento. Um pescador chamado Israel Chávez me disse: "A polícia não deixa a gente nem chegar perto do presidente. As autoridades não vêm aqui, não sabem como passamos o último ano e, por isso, dizem que teremos de viver nestas aldeias por um ano mais."

A paciência das vítimas pode acabar depois de um tempo, quando a maior parte da imprensa vai embora e as doações se tornam escassas. "Aqui é uma zona gelada, de vento forte e tempestade. As crianças vivem doentes, os velhos não conseguem andar da porta para fora por causa das ladeiras e do barro, não temos água corrente. Isso aqui é um horror", disse o pescador, que vivia em Concepción.

O governo chileno vivia um dilema: se melhorasse demais as condições dos barracos, tornaria esses bairros provisórios definitivos. Alguns moradores tinham interesse em conseguir de fato um título de propriedade num bairro novo, mais alto e seguro, como aqueles em que tinham sido feitos os barracos. Mas os terrenos tinham donos e o governo tinha outros planos. Não demora até que a especulação imobiliária também passe a fazer o que sabe fazer: especular.

É possível que as inundações no Rio Grande do Sul provoquem o mesmo: um misto de aprendizado e esquecimento. Alguns aspectos, como o da moradia e da destruição do pequeno comércio, têm o risco de, com o tempo, serem fundidos com elementos ligados à pobreza e à precariedade habituais em países em desenvolvimento. Grandes tragédias despertam uma solidariedade incomum. Já as tragédias cotidianas, paulatinas, sazonais, mais ordinárias, como a pobreza, o desemprego e as políticas habitacionais precárias tendem a ser absorvidas por uma normalidade tolerante que, com o tempo, tudo aceita.

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