Boliviano usa arte drag para combater preconceito entre imigrantes

Remberto Suárez Roca chegou ao Brasil em 2014 e começou suas apresentações quando confeccionava perucas

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Remberto Suárez Roca, transformista boliviano - Natalia Hare/Folhapress

São Paulo

O cuidador de idosos Remberto e a artista Florência dividem o mesmo apartamento, a mesma cama e até a mesma escova de dentes, mas nunca estão juntos. Quando um surge, o outro some. É assim desde sempre.

A dupla, porém, jura não conseguir viver separada. Faz sentido. Florência é a drag queen idealizada e encarnada por Remberto.

Essa parceria remonta à Bolívia. Mais especificamente, Trinidad, cidade no coração do país. Lá, Remberto Suárez Roca nasceu em 1987, numa comunidade tradicional andina, de valores patriarcais. Nunca havia prestado atenção nisso até assumir ser homossexual, o que dificultou a vida naquela área.

Por isso, deixou sua família rumo ao Brasil, em 2014. Parou em São Paulo, onde entendeu que seria mais fácil encontrar um bom trabalho para estabilizar sua condição financeira.

Começou, porém, tomando calote de um empregador. Depois, passou a ganhar R$ 500 costurando perucas. "Era o roteiro do imigrante. Abusado e mal pago", relata.

Daquele mar de cabeleira surgiu uma ideia. Pegou algumas das peças mais extravagantes, se montou como mulher com maquiagem pesada e passou a fazer apresentações em espaços públicos. Assim, brotava Florência, a chola —termo aplicado a bolivianas que usam vestimentas tradicionais, como chapéus e saias étnicas, as polleras.

Florência, drag queen encarnada pelo boliviano Remberto Suárez Roca - Natalia Hare/Folhapress

Remberto, mesmo precisando de dinheiro, não se preocupava muito com o retorno financeiro daquilo. A partir de seu alter ego alegre e debochado, muito diferente da sua conduta tímida, queria divulgar e debater o papel e os limites do imigrante na comunidade LGBTQIA+. Para isso, brada versos e prosas de sua própria autoria, em portunhol.

"Como transformista, quero dar um grito de diversidade e exaltar que o Brasil é um país livre", afirma. "Livre, principalmente para aqueles rejeitados em sua terra", continua.

Remberto diz que, entre os imigrantes vivendo em São Paulo, discussões sobre direitos homotransexuais são evitadas. Herança de traumas, ele afirma.

"Muitos dos ativistas chegando em solo brasileiro sofriam perseguição em seus países de origem, devido à sua orientação ou identidade, e preferem evitar o tema", explica.

Remberto se considera um dos poucos bolivianos vivendo na capital paulista —maioria dos estrangeiros na cidade, com 75 mil indivíduos, segundo censo da prefeitura— a se posicionar abertamente a favor dos direitos LGBTQIA+. E diz que, onde surge travestido em Florência, é recebido com festa por conterrâneos.

"Sinto que estou mudando um pouco as pessoas a cada apresentação, deixando elas mais abertas, sabe?", diz. "O povo da Bolívia é muito fechado, mas precisa entender que o Brasil é diferente."

A pauta pela diversidade não é a única coisa a sustentar a fama de Remberto. O artista é um militante de longa data pelo direito à moradia para imigrantes, participando em 2021 da fundação da Ocupação Jean-Jacques Dessalines, na Liberdade, no centro de São Paulo.

O nome do espaço homenageia um dos responsáveis pela independência do Haiti no início do século 19. Há na ocupação forte presença de famílias do país caribenho, assim como bolivianos, venezuelanos e holandeses.

A maioria é formada por trabalhadoras e trabalhadores informais que já habitavam a região central. Em comum, possuem trajetórias marcadas por despejos após virem sua renda encolher com a pandemia de Covid-19.

Remberto recebeu a Folha na ocupação, na última segunda-feira (24), para contar sua história. Após quase uma hora de conversa, muitas trocas de roupa e olhadas penetrantes no espelho, Florência apareceu. "Esta somos nós", disse, orgulhosa.

A fábrica de peruca onde tudo começou já faliu. O boliviano encontrou nova ocupação como cuidador de idosos e recebe pouco mais de um salário mínimo.

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