Aquele 21 de maio de 2010 tinha sido muito esperado. Aos 14 anos, Camila (nome fictício) iria para a primeira festa de 15 anos da vida, e era a da sua melhor amiga. Fazia parte do seleto grupo de 15 meninas escolhidas pela aniversariante para dançar a valsa. Seria um momento marcante.
Mais de 14 anos depois, o que aconteceu naquela noite foi recontado pela jovem dezenas de vezes para polícia e autoridades judiciais, todas em vão.
O baile para 160 convidados ocorreu no Ipanema Clube, na região central de Sorocaba, interior de São Paulo. Tinha bufê, jantar e um espaço com bartender. Adolescentes pediam caipirinhas e eram prontamente atendidos sem comprovação de idade, o que é proibido por lei.
Passado algum tempo, Camila começou a sentir tontura e chegou a vomitar. Relata que, sem achar seu celular, pegou emprestado o aparelho de uma amiga e pediu a mãe ir buscá-la. O mal-estar piorou e, enquanto esperava, pensou que talvez tivesse deixado o telefone no camarim onde a debutante e suas damas se trocaram.
Ao entrar no cômodo, foi surpreendida por trás, pega pelos braços e arrastada até o banheiro. A partir desse ponto, sofreu um "apagão". Pessoas ouvidas na apuração contaram que encontraram Camila desnorteada, com a parte de cima do vestido abaixada, sem calcinha, sangrando e chorando muito.
O autor do estupro nunca foi identificado. Ao longo dos anos, a vítima passou por processos de regressão e hipnose na tentativa de lembrar algo que ajudasse na identificação, mas não conseguiu. O inquérito policial foi encerrado cerca de um ano depois por falta de autoria. Desde 2013, mãe e filha buscam reparação.
Hoje com 28 anos, Camila afirma que consegue perdoar a pessoa que a violentou, mas não superar a mágoa de ter sido abandonada num momento de tamanha vulnerabilidade. "Fui apontada como culpada. Foi espalhada muita mentira, inclusive por parte da família [da debutante], para se contar uma outra história e evitar um escândalo."
O pedido de indenização por danos morais e materiais no valor de R$ 472,5 mil envolve os anfitriões, o Ipanema Clube e a proprietária da empresa contratada para o serviço de bartender.
Todas as partes foram procuradas pela reportagem para comentar o caso, mas até a publicação só o clube respondeu. O advogado Dimas Farinelli Ferreira enviou uma mensagem por email reiterando o que foi declarado aos autos (leia mais ao fim do texto).
Segundo a ação de mais de 700 páginas, o estupro teria ocorrido por volta de 2h30, mas ela só chegaria na manhã do dia 22 de maio ao hospital, onde recebeu a medicação de profilaxia de infecções sexualmente transmissíveis e a pílula do dia seguinte, que fazem parte do protocolo desses casos.
O laudo médico pericial indica que a vítima, que era virgem, sofreu "laceração vaginal e de vulva, com sutura de laceração em parede vaginal à direita em 1/3 superior de vagina; sutura de laceração em pequeno lábio vaginal à direita". Embora não conste na ação, ela afirma que também passou por cirurgia de reconstrução de hímen.
A advogada Sheila Diniz Rosa Santos, que representa Camila, critica o que chama de falhas no processo desde o início. "Era final de festa, não havia tantos convidados. A primeira atitude na hora que viram a situação era impedir a saída de qualquer um. E chamar o socorro, a polícia. Simplesmente pediram para a cerimonialista ficar com ela no camarim e não deixar ninguém entrar", diz.
A calcinha que a vítima usava foi encontrada dias depois. O vestido passou por perícia, que constatou a presença de sangue, mas não de sêmen.
Exame de sangue feito à época detectou consumo de álcool, mas apenas a análise da urina poderia indicar se havia substância entorpecente, já que a amostra era insuficiente. Segundo a advogada, a coleta de urina foi feita, mas o exame nunca apareceu. "Ele poderia comprovar se ela tinha sido dopada."
Santos diz que a reconstituição foi prejudicada. "Quando foram periciar o salão, funcionários do clube já tinham acessado o camarim e iniciavam a limpeza. É inacreditável pensar que o suspeito saiu do local, sujo de sangue, e ninguém viu."
Dezenas de pessoas falaram como testemunhas, entre elas profissionais da festa, o policial que atendeu a ocorrência e convidados. Um dos depoimentos menciona o nome de um possível autor do crime. No inquérito, consta que o suspeito nunca compareceu à delegacia para ser ouvido.
Camila ficou um mês fora da escola se recuperando da cirurgia e iniciando o acompanhamento psicológico. Ao retornar, se viu abandonada. Até uma comunidade na extinta rede social Orkut foi criada a fim de humilhá-la. Houve tentativa das partes acusadas de desqualificar o crime.
A busca por indenização começou em setembro de 2013 e a última audiência do caso só ocorreu em junho deste ano.
"O dinheiro não vai fazer o que me aconteceu se apagar da minha vida. Mas é uma forma de reparação pelo que me aconteceu há 14 anos e todos os dias continua acontecendo dentro de mim", diz.
O que dizem os citados
Nos autos do processo, os envolvidos contestaram as acusações de Camila e sua mãe.
O Ipanema Clube afirmou que não era o responsável pela segurança do evento e que isso cabia à cerimonialista contratada pelos anfitriões. Disse ainda que funcionários só limparam os banheiros do salão e não entraram no camarim.
A família da debutante argumentou que a Camila se embriagou voluntariamente e que a festa foi oferecida sem cobrança de valor de convidados, sustentando que, como não houve relação comercial entre as partes, eles não podem ser responsabilizados.
A empresa de bartender declarou que o serviço firmado incluía bebidas alcoólicas e que o bufê, que não é citado na ação, também serviu drinks. Disse ainda que não foi contratada para fazer segurança.
Em nota, a Secretaria da Segurança Pública afirma que o caso foi arquivado pela Justiça. Diz ainda que a Delegacia da Mulher de Sorocaba "ouviu diversas testemunhas e analisou os laudos periciais elaborados pelo Instituto Médico Legal, assim como os demais elementos apresentados na época dos fatos".
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