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No Dia Mundial da Segurança dos Alimentos, 19 milhões de brasileiros dormirão sem jantar

É prioridade restabelecer políticas públicas que nos tornaram referência mundial no combate à fome

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Ana Paula Souza

Coordenadora de advocacy da ONG Ação da Cidadania. Participa do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional do Estado do Rio de Janeiro e da comissão organizadora da Conferência Nacional Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional

O dia 7 de junho passou a ser uma data estabelecida pela Organização das Nações Unidas (ONU), a partir de 2019, para conscientizar sobre a importância da segurança dos alimentos. Com o tema deste ano, “Alimentos seguros agora para um amanhã saudável”, pretende-se destacar a produção e o consumo de alimentos seguros e seus benefícios para todas as pessoas, para o planeta e para a economia.

Na contramão do que se esperava, porém, e em direção a um retrocesso que avança desgovernadamente, o Brasil se depara com a volta ao Mapa da Fome da ONU.

Uma dor que volta a assombrar famílias brasileiras em números alarmantes. São 116,8 milhões de pessoas com algum grau de insegurança alimentar, ou seja, não consomem alimentos de forma suficiente em quantidade e qualidade adequadas.

Destes, 19 milhões estão passando fome em meio à pandemia da Covid-19, em estado de falta de comida grave, números desvelados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan) em dezembro de 2020.

É preciso dizer, que hoje, 19 milhões de brasileiros não tomarão café da manhã, não terão o que almoçar e dormirão sem jantar. Hoje, milhares de crianças pedem sem sucesso o que comer aos seus pais.

A maioria é mães chefes de família, com baixo grau de escolaridade, negras, sobretudo das regiões Norte e Nordeste do país, que estão sentindo a dor da fome em seu próprio corpo e no olhar de suas crianças. Essa realidade, negada pelo próprio presidente da República, não pode ser negada pela população brasileira.

Em 1993, Herbert de Souza, o Betinho, anunciou que “a fome é a pior violência” e convocou a população para o que seria a maior campanha de solidariedade que o Brasil realizou.

Com a criação da Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria e pela Vida, desnaturalizou a violência da fome, tornando visível o assustador número de 33 milhões de brasileiros que não tinham o que comer neste período. O Brasil estava entre os países que faziam parte do Mapa da Fome da ONU, com mais de 5% da população em estado de insegurança alimentar grave.

Com campanhas, mobilização nacional, participação de todos os setores da sociedade e vontade política foram se conquistando políticas públicas de enfrentamento à fome de maneira estrutural.

A criação do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, em 2004, deixou clara a prioridade do Governo Federal. O Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea), recriado em 2003, com representatividade de todos os segmentos da sociedade, influenciou fortemente a implementação de políticas públicas assertivas no enfrentamento à fome, pela soberania e segurança alimentar e nutricional no país.

O conjunto de políticas públicas neste sentido, a efetiva contribuição e o controle social tiraram em 2014 o país do Mapa da Fome da ONU, reduzindo significativamente os números.

No entanto, drasticamente, no fim de 2016 foi aprovada pelo Congresso Nacional a Emenda Constitucional nº 95, medida de austeridade fiscal que congela por 20 anos os investimentos com gastos sociais que mantinham as importantes políticas públicas para erradicação da fome.

Estes cortes atingiram justamente a parcela mais vulnerável da população, fragilidade que se mostrou já com o aumento da pobreza e da extrema pobreza, atingindo quase 55 milhões de pessoas em 2017, segundo o IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, mostrando aumento de dois milhões a mais que em 2016.

Contrário ao que se pode imaginar em momento de crise, vimos em tão pouco tempo o desmonte do resultado de muito esforço e mobilização, a negligência do que humanamente se tornou direito constitucional apenas em 2010, o direito humano à alimentação. Sendo negado, inclusive, nosso direito de participação, com a extinção do Consea em 1º de janeiro de 2019.

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Coordenadora de advocacy da ONG Ação da Cidadania - Divulgação / Ação da Cidadania

Esse foi o preparo que tivemos para enfrentar a pandemia no ano passado, em meio ao crescimento do desemprego, aos cortes no programa Bolsa Família, à não correção orçamentária do Programa Nacional de Alimentação Escolar, à redução de investimentos no Programa de Aquisição de Alimentos e no Programa de Construção de Cisternas no Nordeste.

Ao fim das políticas de controle de preços e estoque de alimentos, ao desinvestimento nos restaurantes populares, cozinhas comunitárias e bancos de alimentos.

E o pior: ao desinvestimento na agricultura familiar, responsável pela produção de alimentos em detrimento dos investimentos no agronegócio exportador e produtor de commodities.

A maior parte dos alimentos consumidos no país vem da agricultura familiar, que possui a menor parte das terras cultiváveis, em desproporção aos grandes produtores rurais, que possuem a maior parte das terras, trazendo pouquíssimos alimentos para a mesa da população brasileira.

As pesquisas mostram o avanço da fome entre as famílias produtoras. Ela avança na área rural, que carece de investimentos em assistência técnica, infraestrutura e apoio à comercialização.

Um projeto de lei foi criado visando medidas de apoio aos agricultores familiares no momento de pandemia. A Lei Assis Carvalho teve suas propostas vetadas quase na íntegra pelo presidente Jair Bolsonaro.

Como garantir a produção segura de alimentos sem valorizar o pequeno produtor? Sobretudo, aqueles que produzem alimentos orgânicos cultivados sem agrotóxicos.

É preciso valorizar sistemas de produção agroecológicos, respeitando a biodiversidade de nossos territórios tão diversos e ricos. Na contramão dessa produção segura, somente no período de dois anos, o governo atual aprovou a liberação de 967 agrotóxicos.

Em direção oposta à austeridade política, temos o crescimento e fortalecimento da solidariedade dos que estão vivendo bem de perto a dor da fome. Estamos mobilizando centenas de comitês da Ação da Cidadania por todo o país, atuando na arrecadação e distribuição de toneladas de alimentos.

Porém, o que estamos vivenciando deixou de ser uma situação emergencial, em que conseguimos cestas básicas para suprir uma situação momentânea das famílias. Estamos acompanhando o sofrimento permanente dessas pessoas, sem possibilidade de resolução estrutural dessa violação.

O que vemos atualmente são voluntários chegando ao esgotamento, dividindo o alimento de suas próprias famílias com as demais e ainda vivenciamos o agravante dos que recebem a cesta básica e não possuem meios para cozinhar estes alimentos.

Um cenário que nos remete a 1993, quando Betinho teve que mostrar que a fome não era uma dor natural, não faz parte da vida e é uma violência inadmissível. Algo que essas 19 milhões de pessoas não deveriam experimentar sequer por um dia em suas vidas.

É urgente restabelecer a participação da sociedade e ouvir os que conhecem caminhos para erradicar a fome e garantir a soberania e segurança alimentar. São grupos coletivos e frentes de ação, como a Conferência Popular por Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, e os conselhos de segurança alimentar e nutricional estaduais e municipais.

Revogar o teto dos gastos e restabelecer políticas públicas que nos tornaram referência mundial no combate à fome devem ser prioridades neste momento, além da vacina para toda a população. Comida no prato e vacina no braço para salvar vidas.

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