"Onde descansam os técnicos de enfermagem?"
A pergunta insistente da arquiteta Daniela Giffoni circulou durante quatro horas no hospital. A resposta veio com a abertura inesperada de uma porta: uma profissional negra, sentada no chão de um pequeno quarto escuro e mofado, com uma quentinha entre as pernas.
Em um dos maiores hospitais públicos do Rio Grande do Sul, era assim que profissionais que fazem curativos, aplicam vacinas e dão conforto a pacientes repousavam.
"É isso o que está dentro da maioria dos hospitais e a gente não vê", diz Daniela, 48. "São as pessoas mais linha de frente e também os últimos da fila."
Foi para cuidar de quem cuida durante a pandemia que ela idealizou o Coletivo Arquitetos Voluntários. Em vez de palmas na janela, mãos à obra.
Com viagem para Portugal cancelada em fevereiro de 2020, Daniela teve 15 dias livres do seu escritório. "Costumo trabalhar muito, sujo o pé, boto capacete, vou para a obra, então fiquei ansiosa, sacudia meu marido."
Com ajuda do próprio, criou um "hackathon", encontro virtual para criar ideias e lidar com a crise que se avizinhava.
Foi lá que se aproximou de Bianca Russo, 43, hoje diretora de operações do grupo. A arquiteta havia acabado de se mudar para a Serra Gaúcha.
A dupla tem bastante coisa em comum: paixão pelas artes plásticas, gestão de escritórios de arquitetura de interiores, dois filhos cada uma e o gosto pelo chão de obra.
"Acham que arquitetura é bobagem, coisa de gente rica. Mas estamos falando de qualidade de vida", diz Bianca.
Daniela, que trabalha com inovação, tinha o desejo de fazer algo provocativo. "Usar a arquitetura como ferramenta de transformação."
O grupo começou com sete profissionais. "Emprestamos nossos nomes e conexões comerciais para o projeto", lembra Bianca.
A primeira ação, em março de 2020, foi no Hospital de Clínicas de Porto Alegre, referência no atendimento a casos graves de Covid. Em uma ligação, souberam que o complexo tinha dois pavimentos novos com 105 leitos.
"Elas me perguntaram: o que podemos fazer para ajudar? Eu não sabia o que dizer, não estamos acostumados com esse abraço", diz Ana Paula Coutinho, assessora-adjunta da diretoria administrativa do Hospital de Clínicas.
"Naquele momento era preciso salvar vidas", afirma Daniela. "Primeiro, vinham o oxigênio, o respirador, depois o burnout dos profissionais."
Em 45 dias, com o apoio de doações, os voluntários entregaram dormitórios, sala de paramentação, vestiário, espaço para lanche, sala de apoio psicológico e "espaço de descompressão".
Primeiro, vinham o oxigênio, o respirador, depois o burnout dos profissionais
"Pegamos esse termo emprestado do Vale do Silício, ele não existe na arquitetura hospitalar", diz Bianca, sobre o local pensado para que médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares pudessem se desconectar da tensão diária.
"A equipe ficou incrédula porque é diferente do que conseguimos alcançar sendo instituição pública e com orçamento restrito", diz Ana Paula. "O coletivo mostrou que a sociedade pode apoiar o serviço de saúde público e que é importante estarmos abertos a parcerias", completa.
O resultado motivou o grupo, que alcançou 130 integrantes —90% mulheres— dispostos a tudo: desenhar, projetar, organizar e até oferecer a garagem da avó para depósito.
Da Serra Gaúcha, Bianca disparava ligações de segunda a segunda. "Explicava a situação e duas horas depois já chegavam paletes de MDF para os móveis. Estavam todos mobilizados pela emoção."
Cenário que mudou com o avanço da segunda onda. "As pessoas estavam cansadas, e os fornecedores, sem insumos."
Daniela fazia visitas a hospitais, que a essa altura conheciam o Coletivo e pediam ajuda. "Tinha banheiro quebrado na UTI, sala de lanche na área vermelha [local de contaminação], dormitório sem colchão, médicos usando beliche para discutir caso. Uma profissional ligou chorando, a equipe inteira tinha adoecido."
Foram doados mais de 60 mil horas dos arquitetos e produtos de 250 empresas. As 19 ações beneficiaram mais de 20 mil profissionais em hospitais. E chegaram a postos de saúde do Rio Grande do Sul.
"Quando você precisa dar uma paradinha, quando a pressão de ver a doença pesa, ali tu tens um lugar para respirar", diz Raquel Michels, 59, enfermeira da UBS Parque dos Maias, em Porto Alegre.
Em 2021, o maior pronto-socorro de portas abertas de São Paulo também entrou em contato com o Coletivo.
"Eu me emocionei com o ato deles de trazer humanização para a equipe", afirma Helga Fuchs, supervisora de captação de recursos da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo.
O hospital que chegou a atender a cem pessoas por dia com sintomas respiratórios e registrou 2.220 internações por Covid buscava acalanto para seus profissionais.
Para os arquitetos, era a chance de atuar em uma construção neogótica de 1884 e em uma instituição com 460 anos.
"Nossa inspiração é o prédio da Santa Casa", afirma Francine Azevedo, 31, arquiteta que coordena a ação na cidade. "A história daqui e o propósito nos incentivam."
A proposta é reformar o maior local de conforto da equipe, que fica no pronto-socorro.
"O espaço de descompressão para convívio de todos é inédito", diz Rogério Pecchini, médico e diretor de operações em saúde da Santa Casa. "O projeto ressalta tijolos, janelas, elementos do prédio."
Dormitórios ganharão mobiliário e iluminação indireta. O corredor terá armários e uma copa. O auditório será sala de estudo para residentes.
A reforma nem foi iniciada, mas na visita os voluntários receberam apoio. "É um prêmio para a gente", afirma uma enfermeira.
Além da intervenção que será iniciada em breve, fica outro legado para a Santa Casa. "Já tivemos muitas doações para médicos, mas quase nunca para enfermeiros ou técnicos", afirma Pecchini.
Cenas como a da profissional no chão não saem da cabeça de Daniela. "Uma vez, uma turma de técnicos achou o novo conforto lindo, mas riram quando disse que era para eles. 'Duvido de que vão deixar a gente usar'."
Mas há também histórias de profissionais que compram flores para o jardim do posto. E chegam vídeos de pessoas usufruindo dos novos espaços coletivamente.
"Nosso objetivo é fazer uma provocação para que as pessoas conheçam instituições de saúde, para que a comunidade se envolva", diz Daniela.
A dupla de arquitetas não consegue mais imaginar a vida sem o voluntariado. Gerenciam seus escritórios e equipes, apoiam filhos, estudam, vão para o pátio de obras e lideram 130 arquitetos para cuidarem de quem cuida.
E garantem: "Todo mundo pode fazer alguma coisa para ajudar alguém".
Comentários
Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.