Dupla reprograma vida de egressos com linguagem futurista

Alan Almeida e Carla Cristina, criadores da Aceleradora dos Parças, partem de experiências com familiares para usar tecnologia como resgate de jovens

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São Paulo

Em 2016, Alan Almeida deixava uma unidade da Fundação Casa (Centro de Atendimento Sócio-Educativo ao Adolescente) quando ouviu: "Vê se você se endireita. Não quero mais te ver aqui".

O porteiro acreditava que ele era um interno que chegava à liberdade. Alan sofria ali mais um ato de preconceito.

Mas, daquela vez, ele não se ofendeu, afinal estava mesmo vestido como interno —de bermuda e camiseta. Raspara o cabelo como um deles. E tem a mesma cor de pele da maioria dos adolescentes cumprindo medida socioeducativa.

um homem de terno e uma mulher de vestido posam sob um árvore e um muro branco
Alan Almeida, 29,é fundador da Parças Developers School e atua em parceria com Carla Cristina, 37 - Renato Stockler/Folhapress

Esse look e o ato de realizar trabalhos voluntários na Fundação Casa fizeram os internos considerarem Alan um parça, que, na gíria da periferia, é parceiro, alguém confiável.

A trajetória que levou Alan até lá e a ser um empreendedor social foi forjada no fogo.

Isso porque, após iniciar sua jornada profissional aos 13 anos, no recanto dos Humildes, ocupação regularizada na zona norte de São Paulo, Alan viu frustrada suas investidas como faxineiro, ajudante de pedreiro, atendente e vendedor de sorvete.

À época ele sonhava em ajudar a mãe, a costureira Aureny Santos de Almeida, 60, e ter pequenos prazeres, como tomar um Chicabon.

Coube à mãe fazer o tal batismo de foto. Aureny, que criou Alan e os três irmãos dele de maneira solo, flagrou o filho mais velho, com 17 anos, portando pacote com uma arma, a pedido de um comerciante.

Além de impedir a entrega, a mãe, para evitar que os irmãos seguissem o mais velho e fizessem "coisas erradas", queimou a mão direita de Alan no fogão. Disse que não deixaria o filho virar criminoso. "Passei tanta vergonha, que nunca me esqueço", diz Alan. "E tenho a marca aqui na mão."

Para se desculpar e ajudar a curar as feridas, Aureny pediu a um parente que o filho fosse contratado num escritório de advocacia. E lá Alan reprogramou sua mente. "Vi como todos se vestiam, como falavam e a maneira como eram tratados. Fiquei fascinado."

Dali em diante, deslanchou. Entrou para a faculdade, formou-se em direito e até se desafiou a tocar saxofone, o que lhe garantiu bolsa na Faculdade Zumbi dos Palmares e a chance de tocar em eventos com o irmão gêmeo, Diego, prodígio no teclado.

E foi numa festa em 2015 que conheceu Carla, que já tinha jogado bola com Milene Domingues, dado aulas a idosos em telecentro e se tornado instrumentadora cirúrgica.

E havia quatro pontos a conectar a vida de ambos com o sistema carcerário do país, o terceiro maior do mundo --811 mil detentos--, atrás de EUA e China, segundo o World Prison Brief, levantamento do Institute for Crime & Justice Policy Research e da Birkbeck University of London.

O primeiro ponto de contato foi a prisão de um primo de Alan que ficou interno na Fundação Casa --as visitas a ele fizeram de Alan voluntário no local. O segundo foi um tio de Carla —que cumpriu pena no Carandiru—, e a salvara na infância, ao evitar que uma parede da casa caísse sobre ela durante um temporal.

A terceira ponta do quadro que se formava foi Alan tomar ciência de que um tio seu, irmão da mãe, morreu numa cadeia na Bahia, nos anos 1970.

Nessa época, em 2016, ele já atuava e se destacava no Citibank, mas, como na adolescência, viu seu esforço ir por água abaixo quando a área em que atuava seria desfeita após a fusão com o Itaú. Aí ouviu de um chefe: "Só vai ficar quem entender de programação".

Alan, então, mergulhou nos códigos da tecnologia e se casou com Carla em 2018. Nesse ano, ao ser abordado na rua por um recém-saído do presídio de Franco da Rocha que lhe pediu dinheiro para voltar para casa, formou a última peça do quebra-cabeça.

Alan deu a grana e viu no rapaz o abandono com que o egresso deixa o sistema. A conversa levou a reflexão posterior com Carla. Foi quando Alan tomou como chamado divino a missão de "reprogramar" egressos do sistema prisional.

Minha História

Depoimento de uma pessoa beneficiada pelo projeto

Não foi fácil. Foram 35 reuniões só para que uma unidade da Fundação Casa autorizasse Alan a dar aulas. Nascia ali a Parças da Esperança, que virou {Parças} Developers School. "Com colchetes no nome por englobar o código da linha de programação e dar sentido de abraço", afirma ele.

E a {Parças} só não faliu porque em 2018 o casal passou pelo VaiTec, aceleração de dez meses da Prefeitura de SP, em que receberam R$ 33 mil para o negócio. Ali Alan e Carla viram o quão disruptivos poderiam ser, ampliaram a ação para a penitenciária feminina e montaram um bootcamp de formação na periferia, em Taipas.

A aceleração VaiTec foi fundamental para a manutenção da escola de programação
A aceleração VaiTec foi fundamental para a manutenção da escola de programação - Divulgação

Com o discurso de tornar cada um dos cerca de 1.500 presídios do país uma célula produtiva, com linguagem tecnológica adaptada aos códigos da quebrada, Alan, 29, e Carla, 37, passaram a transformar vidas. "É mais fácil reprogramar e mudar a mente de uma egressa e de um egresso do que o preconceito da sociedade", diz Carla. Novas acelerações e investimentos levaram a startup social a outro nível, beneficiando mais de 1.000 pessoas.

"Ninguém dá a mão a egressa. Essa chance dada pelos Parças eu agarrei. Queremos voltar à sociedade e ter uma carreira, não só por mim como pelos meus dois filhos", diz Rosenilda dos Santos, 40, que virou analista de automação de testes e ganha cerca de R$ 4.000.

Com empregabilidade superior a 50%, a {Parças} cresceu na pandemia. Alan e Carla gerenciam equipe de 23 pessoas e se preparam para lançar mais 10 bootcamps nas periferias de SP. "Tão importante quanto recuperar é dar chance de jovens não entrarem no sistema prisional", diz ele.

Tão importante quanto recuperar é dar chance de jovens não entrarem no sistema prisional

Alan Almeida

Aceleradora dos Parças

Na luta para convencer a sociedade de que sua missão é questão de autopreservação, a {Parças} prepara para 2022, na Bahia, a entrada no sistema masculino adulto, com um fablab (fábrica e laboratório), em parceria com a Socializa, para formar 4.000 presos.

Na {Parças}, a linguagem futurista diz respeito a blockchain, machine learning, desenvolvimento de games e aplicativos e por aí vai. Das aulas, já surgiu um jogo sobre privação de liberdade e até aplicativo que ajudou Pernambuco a controlar casos da Covid.

Com plano até de abrir casa de acolhimento --para quem não consegue voltar à terra natal após a pena-- e à espera do segundo filho com Carla --já são pais de Lucas, 3--, Alan resume seu dia a dia: "Lutando com a vida e vencendo". Sempre atenta aos passos do filho, Aureny dá o veredicto: "Ele é parceiro".

Alan Almeida, 29, e Carla Cristina, 37, são os vencedores da categoria Inclusão Social e Produtiva do Prêmio Empreendedor Social em Resposta à Covid-19 em 2021.

Alan Almeida que ganhou junto com Carla Cristina na categoria Inclusão Social e Produtiva, com a Aceleradora dos Parças
Alan Almeida que ganhou junto com Carla Cristina na categoria Inclusão Social e Produtiva, com a Aceleradora dos Parças - Jardiel Carvalho/Folhapress

Sensibilizados com a falta de perspectiva profissional de homens e mulheres egressos de presídios e atentos às necessidades do mercado de tecnologia, o casal criou a {Parças} Developers School.

Na pandemia, a startup selecionou mil jovens para treinamentos a distância, com acompanhamento técnico e pessoal para encaminhá-los ao mercado de TI, carente de mão de obra especializada, com salários competitivos.

O casal venceu na categoria que inclui esforços para a inclusão na base da pirâmide e o combate à precarização do trabalho na crise. Eles concorreram com Alice Freitas, da Rede Asta, que criou o marketplace Pertinho de Casa, e Nina Silva e Alan Soares, à frente do Movimento Black Money.

Ao todo 317 projetos se inscreveram nesta segunda edição com foco no enfrentamento da pandemia da premiação realizada pela Folha em parceria com a Fundação Schwab.

O Prêmio Empreendedor Social tem patrocínio de Gerdau, Ambev, Sesi/Senai, Coca-Cola e Vedacit e parceria estratégica de Ashoka, SPM, Fundação Dom Cabral, Pacto Global e UOL.

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