Como a linguagem da terapia ganhou espaço na busca por relacionamentos

A procura por um parceiro agora tem a saúde mental como foco – e anunciar esse cuidado parece ser uma vantagem

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Dani Blum
The New York Times

Quando Lauren Scott ficava entediada, se distraía procurando alguém para namorar. O processo às vezes era cansativo e repetitivo. Em bares, piqueniques, campos de minigolfe e sorveterias, ela respondia a perguntas sobre suas aulas de cibersegurança e seus gostos musicais. Mesmo assim, era algo para fazer. Pós-graduanda de 23 anos de Tampa, Flórida, Lauren teve cerca de 34 primeiros encontros no ano passado, às vezes acumulando três em uma semana.

Um desses primeiros encontros, em especial, lhe pareceu que poderia levar a algo mais. O rapaz enviava mensagens de texto constantes. Dizia sentir saudades dela. Afirmou ter contado a sua família sobre ela. Mas, depois de uma noite passada fazendo pizza juntos e assistindo a um filme no sofá da casa de Lauren, ele parou de responder às mensagens dela.

Lauren desabafou sobre isso num telefonema com sua mãe, que fez o diagnóstico: segundo ela, o rapaz havia praticado "love bombing" com sua filha.

Usuários de aplicativos de namoro são mais específicos sobre o que querem - Studio Romantic - stock.adobe.co

Lauren deu risada. "Falei ‘de onde você conhece esse termo?’." Sua mãe ouvira o termo, que descreve uma forma de abuso narcisista, na rádio.

A busca por relacionamentos vem com seu dicionário próprio, uma coleção de termos em voga que incluem "breadcrumbing" [jogar migalhas de atenção], "zombie-ing" [agir como zumbi, como reaparecendo dos mortos] e, é claro "ghosting" [desaparecer por completo, sem explicações].

Nos últimos anos, porém, termos usados em psicologia, como "love bombing", "gaslighting" [levar alguém a duvidar da realidade e de si mesmo] e "trauma bonding" [um processo em que a pessoa se apega a uma relação abusiva], também abriram caminho no léxico do namoro.

O Hinge, um aplicativo popular de namoro nos Estados Unidos, ainda deixa seus usuários postar selfies usando óculos de sol e declarar o quanto gostam de martinis. Mas agora eles também podem completar frases como "a terapia me ensinou recentemente a......", "um dos meus limites é ....." e "meu terapeuta diria que eu .....".

Becca Love, 40, é estilista e professora de dança em Montreal e usa os pronomes elx e delx. Às pessoas que despertam seu interesse em aplicativos de namoro, ela costuma perguntar "como é a conexão entre duas pessoas, para você?". Por volta do terceiro encontro, Love e a outra pessoa começam a discutir o "estilo de apego" do potencial par, um resumo prático de traumas da infância.

Essa terminologia não é incomum. Termos e frases ligados à terapia mobilizam pessoas online e já chegaram a escolas e locais de trabalho. Mas a proliferação desse jargão entre pessoas em busca de relacionamentos assinala uma mudança nítida.

"Nos anos 1950 ou mesmo na década de 1980 seria difícil imaginar que dizer a alguém que você faz terapia regularmente seria algo que lhe daria status", afirma o professor de psicologia Eli Finkel, da universidade Northwestern e autor de "The All-or-Nothing Marriage" (O casamento tudo ou nada, em português). Hoje, porém, segundo ele, o fato de uma pessoa cuidar de sua saúde mental a valoriza socialmente em alguns círculos.

"Promover-se falando de sua saúde mental"

Helen Fisher, bioantropóloga, pesquisadora sênior do Instituto Kinsey e assessora científica chefe do Match.com, comanda há 12 anos um estudo sobre os comportamentos e atitudes de pessoas solteiras nos EUA.

Conduzido pelo Match, o estudo "Singles in America" (Solteiros na América, em português), entrevista cerca de 5.000 americanos por ano não filiados ao Match. Em 2022, Fisher ficou espantada com uma descoberta. Ela pediu aos participantes que listassem em ordem de importância os atributos que buscavam em um parceiro potencial. Esperava receber as respostas de praxe: atratividade sexual, confiabilidade, senso de humor e interesses semelhantes. Dessa vez, porém, outra característica entrou para a lista das cinco mais procuradas. Os entrevistados queriam pessoas com maturidade emocional, a capacidade de processar e lidar com os próprios sentimentos.

"Eu sou da geração dos baby boomers", diz Fisher. "Nas décadas de 1960 e 1970, não era isso que tentávamos mostrar às pessoas. Tentávamos mostrar que éramos inteligentes, divertidos, criativos e com ambições profissionais. Hoje as pessoas tentam mostrar que têm boa saúde mental."

Promover a si mesmo sempre fez parte do namoro. As pessoas divulgam suas qualidades positivas –aparência, senso de humor, charme— numa competição "de facto", um processo que foi intensificado, ou no mínimo evidenciado claramente, pela chegada dos aplicativos de namoro.

Nos anos 2010, quando os aplicativos começaram a ser usados amplamente, os usuários procuravam generalizar seus interesses para atrair a atenção do maior número possível de pessoas, diz Jess Carbino, socióloga que já trabalhou para o Tinder e o Bumble. Muitas pessoas optavam por transmitir informações genéricas e inofensivas, segundo ela, que descreveu esse tipo de perfil como "os perfis do tipo ‘curto SouCycle, gosto de brunch e do cachorro de minha tia’".

Mas isso vem mudando nos últimos anos. Hoje cada vez mais pessoas divulgam detalhes íntimos e específicos a seu próprio respeito, incluindo informações sobre sua saúde mental, aponta Carbino. É uma técnica usada tanto para indicar quais são seus valores quanto para excluir pessoas que não vão lhe interessar. Se a terapia é essencial para você, por exemplo, você pode não querer namorar alguém que nunca fez terapia.

A atriz e criadora de conteúdos Capri Campeau, 23, de Los Angeles, diz que falar de terapia também pode transmitir status de maneira mais literal. Pode ser visto como prova de que você tem condições financeiras de fazer terapia, num momento em que a demanda por terapeutas é grande, e que dispõe do espaço e tempo para isso, explica Campeau.

Ser transparente em relação à terapia também confere certo status cultural à pessoa, segundo Carolina Bandinelli, professora da Universidade de Warwick, na Inglaterra, e estudiosa do romantismo e da cultura digital. Dá a entender que você já "se trabalhou". Em outras palavras, que você é uma pessoa esclarecida, a melhor versão de si mesma. "Faz parte desse discurso de auto-otimização", diz Bandinelli.

O jargão da psicanálise encerra um benefício adicional especialmente para os homens heterossexuais: pode ajudar a contestar os estereótipos sobre homens que fogem das próprias emoções, segundo Bandinelli.

"Parece ser um código que os homens andam usando para trapacear", comenta o humorista e apresentador de podcast Jared Freid, 37, de Nova York, que já vasculhou milhares de perguntas e relatos de ouvintes em seus dez anos apresentando podcasts sobre namoro. "Os homens escrevem ‘faço terapia’ nos aplicativos de namoro só porque com isso conseguem mais mulheres, não porque adorem fazer terapia."

Não profissionais podem se equivocar

Os feeds de Kailah Chavis no TikTok e Instagram estão cheios de vídeos e infográficos sobre namoro: orientações sobre como evitar alguém que comete "love bombing", como identificar um narcisista ou como definir limites com seus parceiros românticos.

"Vivo ouvindo sobre ‘sua criança interior’, ‘curar sua criança interior’", diz Chavis, que tem 24 anos e vive em Los Angeles.

Para ela, as pessoas repetem o jargão que aprendem nas redes sociais, onde pessoas, especialmente mulheres, trocam dicas de como reconhecer os sinais de potencial manipulação. Às vezes as dicas vêm de terapeutas de fato, mas com frequência os conselhos são dados por qualquer pessoa munida de uma câmera voltada para ela.

Jessi Gold, psiquiatra na Universidade Washington em St. Louis e membro do Conselho de Comunicações da Associação Americana de Psiquiatria, não se surpreende ao ouvir que o jargão psicológico está entrando para a linguagem do dia a dia.

"Sob alguns aspectos, as pessoas sempre utilizaram os termos de uma maneira que um profissional não usaria", aponta. Falar de doença mental, de modo geral, pode ajudar a afastar o estigma ligado a condições como ansiedade e depressão, ela diz. E deixar-se ser vulnerável com um parceiro novo pode ter efeitos positivos.

Mas há desvantagens evidentes de se aprender um termo de psicoterapia em um vídeo de TikTok ou um meme: os não profissionais podem fazer uso equivocado do termo. "Trauma bonding", em especial, é um termo que costuma ser usado incorretamente para indicar uma conexão formada com outra pessoa com quem você compartilha dificuldades. Já a definição clínica do termo diz respeito a um padrão específico de abuso.

Campeau, a atriz de 23 anos, viu a linguagem da terapia ganhar importância crescente enquanto ela estava usando aplicativos de namoro e procura controlar o desejo de fazer uso excessivo dessa linguagem em seu relacionamento. Por exemplo, quando ela deixa uma pilha de louça suja na pia, comportamento que lembra à sua namorada de uma ex que era especialmente bagunceira, ela evita usar termos como "engatilhar". Em vez disso, discute por que a louça suja faz sua namorada pensar na ex dela.

"Para nós duas, tem sido muito útil tentar usar a linguagem para nosso diálogo, em vez de simplesmente usar os termos para julgar."

Tradução de Clara Allain

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