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Julia Belluz

Novos medicamentos para emagrecer mostram que obesidade não é opção

Remédios a base de semaglutida manipulam os sistemas regulatórios hormonais, amplificando o sinal de saciedade

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Julia Belluz

Julia Belluz é uma jornalista canadense especializada na cobertura de saúde

The New York Times

Na casa de uma menina em Hertfordshire, na Inglaterra, você precisa de um código-chave para entrar na cozinha, onde todos os armários estão fechado com um cadeado e a lixeira está trancada. Sem essas medidas, a criança – cujo nome não pode ser divulgado porque está atualmente em adoção provisória– não conseguiria parar de comer, até mesmo restos de carne crua ou de macarrão jogados no lixo.

"Ela está constantemente atenta para qualquer possibilidade de acesso à comida", como um míssil em busca de calorias, disse-me seu pai adotivo. Seu cérebro não registra que ela comeu. Então ela vive com uma fome constante e furiosa, uma obsessão generalizada sobre sua próxima refeição ou lanche, algo que a distrai de seus outros interesses – bonecas, passeios a cavalo e desenho.

Aos 12 anos, a menina é magra, parece um passarinho. Se seus pais adotivos não fiscalizassem cada bocado, ela seria muito maior, como muitas pessoas que têm a mesma doença, a síndrome de Prader-Willi. Os pacientes de Prader-Willi podem comer tanto que, em casos extremos, seus estômagos explodem, causando sua morte.

Novas drogas para obesidade a base de semaglutidade nos mostram que o tamanho do corpo não é opção - Myskin/Adobe Stock

A doença tem uma causa genética rara e devastadora da obesidade. Mas também existe na extremidade de um espectro de comportamento alimentar comum a todos nós, como me disse recentemente Tony Goldstone, pesquisador de endocrinologia do Imperial College London e médico que trabalha com pacientes de Prader-Willi. "As pessoas pensam que só comem porque querem comer, ou porque decidiram comer de forma racional", disse Goldstone. "Mas muito disso não ocorre no nível consciente."

Tendemos a acreditar que o tamanho do corpo é algo que podemos controlar totalmente, que somos magros ou gordos por causa de escolhas deliberadas que fazemos. Depois de conversar com centenas de pacientes com obesidade ao longo dos anos e com médicos e pesquisadores que estudam a doença, posso garantir: a realidade se parece muito menos com livre arbítrio.

O surgimento de medicamentos novos e eficazes contra a obesidade oferece uma ilustração clara desse fato pouco apreciado da fisiologia. Os debates provocados pelos remédios também mostram quão pouco gostamos da obesidade.

Os sistemas biológicos, influenciados por nossos ambientes e nossos genes, controlam o fluxo de energia através de nós: a energia entra no corpo em forma de alimento e é consumida ou armazenada em nossos corpos, principalmente como gordura. Esses sistemas, decorrentes das interações entre o cérebro e o corpo, são em grande parte involuntários. Eles funcionam de forma involuntária, como nosso impulso reprodutivo ou os mecanismos que estabilizam nossa temperatura corporal.

A criança de Hertfordshire com Prader-Willi "tem uma anormalidade no termostato de equilíbrio de energia em seu cérebro e não responde", disse Goldstone. Mas ela experimenta apenas uma variação dos tipos de sinais de fome e saciedade com os quais todos convivemos.

É relativamente fácil compreender que o ambiente influencia nosso comportamento alimentar e quanto peso ganhamos.

"Viver perto de um mercado de agricultores ou em um deserto alimentar terá uma influência muito maior sobre se uma pessoa faz escolhas alimentares saudáveis do que quanta autodisciplina ela tem", disse-me Dan Brierley, um neurocientista da University College London que estuda obesidade. Muitos de nós vivemos em lugares cheios de calorias baratas e ultraprocessadas, o que pode ajudar a explicar as taxas crescentes de obesidade.

Mas nem todo mundo tem obesidade hoje. Isso porque a forma como reagimos ao ambiente também está sujeita a controles internos –cutucadas invisíveis que nos guiam a cada refeição. Os pesquisadores observaram isso há mais de cem anos e só recentemente começaram a desvendar como esses sistemas funcionam. A nova classe de medicamentos para diabetes e obesidade –como semaglutida (vendida sob as marcas Ozempic e Wegovy) e tirzepatide (Mounjaro)– evoluiu a partir dessa pesquisa.

A cascata de descobertas que levaram a esses medicamentos injetáveis, considerados os mais eficazes já aprovados para a obesidade, pode ser rastreada até 1840, quando os médicos começaram a compartilhar estudos de casos de pacientes que, por razões que pareciam fora de seu controle consciente, comiam demais a ponto de ter obesidade grave.

Em um exame mais aprofundado, muitos tinham tumores no cérebro. Os tumores interferiam em sua fisiologia de maneiras misteriosas que mudavam o que e quanto eles comiam.

Os estudos com animais que se seguiram sugeriram uma nova compreensão do que estava acontecendo: o peso corporal e o comportamento alimentar eram regulados, não apenas o produto do controle consciente, e o cérebro de alguma forma orquestrava o processo.

Os genes também pareciam desempenhar um papel. Os cientistas há muito observavam que a obesidade ocorria em famílias, mas não estava claro o quanto a hereditariedade ou o ambiente explicavam isso. Um famoso estudo de 1990 de gêmeos idênticos nascidos na Suécia mostrou que pares que foram separados no nascimento e adotados tinham pesos mais semelhantes entre si do que em relação as suas famílias adotivas.

Em meados da década de 1990, os cientistas examinaram esse maquinário complexo para ver no nível molecular como os cérebros e os genes moldam o apetite e o peso. Estudos iniciais com camundongos revelaram que os roedores produzem um fator que envia um sinal ao cérebro sobre a quantidade de gordura corporal armazenada neles. Alguns camundongos com obesidade não tinham esse fator e não conseguiam parar de comer. Pesquisadores da Universidade Rockefeller, em Nova York, identificaram o fator em 1994: era um hormônio, que eles batizaram de leptina, codificado por um gene conhecido como LEP.

Mais tarde, pesquisadores da Universidade de Cambridge descobriram o papel da leptina em humanos, após encontrarem pacientes com formas extremas de obesidade infantil, causadas por mutações da LEP.

Assim como em camundongos, a leptina é produzida pela gordura corporal e transportada para a corrente sanguínea, de onde circula até o cérebro. Lá ela envia uma mensagem sobre quanta energia é armazenada no corpo na forma de gordura. Quando os níveis de leptina caem, ou as pessoas têm anomalias genéticas que não lhes permitem produzir leptina ou registrar o sinal dela, o cérebro lê que não há gordura suficiente no corpo, e as pessoas sentem fome e comem mais.

Embora a leptina regule o equilíbrio energético ao longo de horizontes de tempo como semanas, existem muitos outros sinais que orientam nossas escolhas nutricionais de refeição para refeição (assim como existem agora mais de mil variantes genéticas conhecidas implicadas na obesidade).

Um ator bem conhecido é o hormônio peptídeo-1 semelhante ao glucagon, ou GLP-1, que Wegovy e Ozempic imitam. Produzido principalmente pelo intestino, ele diz ao cérebro quando já comemos o suficiente.

A capacidade de sentir essa saciedade –e a fome– varia, resultado de diferenças genéticas nos circuitos cerebrais que controlam o apetite. Isso se manifesta em uma variedade de experiências, desde pessoas com Prader-Willi até aquele amigo que se esquece de comer e é magro sem esforço a vida toda (e, portanto, talvez não consiga entender por que alguém luta contra o peso).

As novas drogas são as primeiras a manipular os sistemas regulatórios hormonais que regem o balanço energético. As drogas simulam a ação do nosso GLP-1 nativo, mas com efeitos mais duradouros, amplificando o sinal de plenitude dentro do corpo. As pessoas que lutam para se sentir saciadas de repente não o fazem, efetivamente dando a "alguém a 'força de vontade' daqueles sortudos o suficiente para ganhar na loteria genética", disse Brierley.

Muitas pessoas que tomaram remédios para obesidade descreveram para mim como sua experiência de fome havia mudado fundamentalmente. Patricia McEwan, que injetou Ozempic durante nove meses, disse que pretendia continuar com a droga por toda a vida porque "desligava os pensamentos constantes e intrusivos sobre comida" que consumiam muito de seu espaço mental desde a infância.

Antes do Ozempic, McEwan achava que comer demais era motivado por suas emoções e falta de força de vontade. Depois do Ozempic, ela entendeu que sua reação à comida era produto de sua fisiologia.

Existem questões em aberto sobre como os medicamentos baseados em GLP-1 funcionarão em longo prazo em pacientes individuais e qual impacto, se houver, eles terão na crescente taxa global de obesidade. Os dados que temos sugerem que a perda de peso das pessoas pode se estabilizar depois de um tempo, e os efeitos colaterais são comuns, assim como a recuperação do peso quando os pacientes param de tomar os medicamentos.

Existem muitos relatos sobre obstáculos de seguro-saúde ou escassez de suprimentos que interrompem ou bloqueiam o acesso das pessoas a medicamentos para obesidade nos Estados Unidos, e não está claro como as pessoas de baixa renda terão acesso a eles. Enquanto isso, o modelo de equilíbrio energético da regulação do apetite está sendo complicado pela evidência de que temos outros tipos de apetite por nutrientes –por proteína, por exemplo– e há muito pouco entendimento sobre como os medicamentos os afetarão.

No mínimo, porém, a maneira como as drogas funcionam pode nos ensinar que as pessoas maiores não necessariamente escolheram ser, assim como as menores não o fizeram –e não são moralmente superiores.

Isso "não é um passe livre, nem para indivíduos que têm a capacidade de escolher melhor, nem tira o peso das indústrias de alimentos", disse o biólogo nutricional Stephen Simpson, da Universidade de Sydney (Austrália), mas é "evidência de que a obesidade não é uma escolha de estilo de vida pessoal".

Aprender sobre essa ciência me ajudou a ver minhas próprias mudanças de peso sob uma nova luz. Quando engravidei do meu segundo filho, rapidamente desenvolvi um apetite voraz. Sentia uma fome que nunca havia experimentado, ficava obcecada por meu próximo lanche ou refeição de maneiras que não costumo sentir e comia quantidades que teria achado inimagináveis (até mesmo insuportáveis) algumas semanas antes. Também ganhei peso rapidamente.

De repente, no meu segundo trimestre, o aumento do apetite e o ganho de peso diminuíram. Mas a preocupação com a comida que eu acabara de vivenciar lembrava meus primeiros anos, quando eu lutava contra a obesidade. Agora eu podia ver que as mudanças não eram resultado de uma súbita falta de força de vontade. Meu cérebro estava dizendo ao meu corpo para obter mais energia para sustentar o feto em crescimento.

Como o cérebro e o corpo das mulheres lidam com isso durante a gravidez e a amamentação ainda é um mistério, um fenômeno que também foi observado em camundongos lactantes que tendem a comer três vezes suas calorias habituais. Algumas pessoas com obesidade são atormentadas pelo tipo de fome que eu sentia o tempo todo durante a gravidez. Também não é uma opção delas.

Tradução de Luiz Roberto M. Gonçalves

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