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Ouvidores de vozes se reúnem em grupos terapêuticos e confrontam estigma da loucura

Reuniões têm como objetivo fornecer ferramentas para que participantes encontrem formas de lidar com o que escutam

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Curitiba

"Ninguém mais está ouvindo? Tem um homem me mandando matar e destruir." A condição que levou Leandro Torquato Amaral, 38, a pedir ajuda médica pode ser encarada pela medicina como um transtorno mental. Mas, para uma organização internacional de pessoas que escutam vozes, ela não é sinônimo de doença.

No Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes (HVM, na sigla em inglês), a audição é analisada com base na trajetória de cada pessoa e debatida em grupos de apoio. A proposta também visa quebrar tabus associados ao fenômeno.

Os ouvidores de vozes se reúnem em grupos terapêuticos que confrontam estigmas, entre eles, o da loucura, e encontram caminhos para lidar com o que ouvem, como identificar gatilhos. O processo envolve também buscar estímulos que afastem as vozes vistas como negativas ou, em alguns casos, conversar com elas.

Encontro do grupo Ouvidores de Vozes de Ribeirão Preto, no interior de São Paulo - Ricardo Benichio/Folhapress

A ideia nasceu na Holanda nos anos 1980 e chegou ao Brasil em 2015, quando dois núcleos foram abertos no interior de São Paulo. Quatro anos depois, já havia mais de 40 grupos, estima o psicólogo Leonardo Duart Bastos, referência nacional no HVM.

Em alguns municípios, a abordagem foi adotada pelo SUS (Sistema Único de Saúde) e integrada aos Caps (Centros de Atenção Psicossocial), a exemplo do que aconteceu em Ribeirão Preto. Foi lá que Leandro, operador industrial aposentado, conheceu o projeto. Ele diz que, após ser diagnosticado com esquizofrenia, começou a tomar remédios –o tratamento amenizou as crises, mas não fez as vozes desaparecerem.

"Isso é comum na prática clínica. Muitos pacientes continuam ouvindo vozes, os remédios por si não resolvem a angústia", afirma a professora Sabrina Stefanello, do departamento de Medicina Forense e Psiquiatria da UFPR (Universidade Federal do Paraná).

Assim, profissionais de saúde do Caps sugeriram que Leandro participasse de um dos grupos. Ele conta que levou um ano até ter coragem para contar sua história. Ao falar de si, percebeu que a voz incômoda era a mesma de um chefe abusivo que o demitiu em meio a uma crise de burnout.

"Tinha a ver com uma raiva que eu não conseguia expor desde a demissão. Era como se o meu inconsciente estivesse me chamando para uma conversa", conta. Hoje, seis anos depois, ele elaborou um modo de lidar com o que escuta. Já identifica gatilhos e é capaz de refutar comandos destrutivos.

A estratégia de evitar ordens é apenas um dos métodos usados para enfrentar a situação, afirma Clarissa Mendonça Corradi-Webster, que coordena o LePsis (Laboratório de Ensino e Pesquisa em Psicopatologia, Drogas e Sociedade) da USP (Universidade de São Paulo) Além de buscar estímulos que afastem vozes negativas, há quem converse com elas ou tente enganá-las como forma de defesa.

Embora os grupos de apoio sejam buscados por pessoas em sofrimento mental, as vozes não têm conotação negativa para o HVM. Só quem vive a experiência pode dizer se ela é boa ou ruim. Isso porque nem todo ouvidor sofre com o fenômeno. "Conheci um homem que ouvia a fala de uma enfermeira quando estava com medo e aquilo o acalmava", diz Clarissa.

É comum o bate-papo ir além das vozes e incluir também arte, religião, traumas e preconceito. Assim, cada grupo ganha uma configuração específica.

O de Curitiba (PR) foi criado há um ano e meio pela psicóloga Loraine Oltmann de Oliveira, que trabalhou no Caps e pesquisou o tema em seu mestrado em saúde coletiva, na UFPR (Universidade Federal do Parará). As reuniões, que são online, reúnem participantes de todo o Brasil e recebem não apenas ouvidores, mas também interessados no assunto. Um tópico muito discutido ali é até que ponto faz sentido silenciar vozes com uso de remédios.

O artista plástico André Coelho Fernandes Castro, 29, que vive na cidade, ouve vozes desde criança. Nas conversas semanais, encontrou um espaço de autonomia e liberdade. "Hoje só busco entender o que as vozes querem me dizer", diz. Para dar vazão ao que escuta, o jovem, que é também mediador do grupo, representa o fenômeno por meio da arte em peças gráficas.

O Movimento dos Ouvidores de Vozes surgiu em meio a debates que eclodiram na segunda metade do século passado e culminaram em movimentos como a luta antimanicomial e a reforma psiquiátrica. No Brasil, um dos reflexos desse cenário foi a Lei Antimanicomial de 2001, que colocou em xeque o tratamento centrado no isolamento de pessoas em grandes hospitais, priorizando a autonomia e a cidadania dos pacientes.

"Ainda vemos vestígios de uma velha psiquiatria. Mas há correntes resistindo a essa visão. Estamos caminhando", afirma o médico Políbio José de Campos Souza, coordenador da residência em psiquiatria do Hospital Odilon Behrens, em Belo Horizonte (MG).

A proposta também avança ao ampliar o leque de possibilidades terapêuticas. "Alguns pacientes querem calar suas vozes, outros não têm interesse nisso. Precisamos parar de enxergar as pessoas à luz de uma mesma chave", pontua a psiquiatra Sabrina Stefanello.

Apesar de ser usada como prática terapêutica, a abordagem é pouco conhecida pela psiquiatria tradicional. À frente de um dos mais antigos programas de pesquisa sobre esquizofrenia do Brasil, o professor Mário Louzã, da USP, nunca acompanhou a proposta de perto, mas acredita que grupos de apoio entre pares podem aliviar o sofrimento psíquico nos casos em que a audição indica algum transtorno mental. O especialista reforça apenas que, para isso, o tratamento médico precisa ser mantido em paralelo.

O movimento vem pautando debates na esfera pública. Em Ribeirão Preto, uma lei municipal de 2020 instituiu o 14 de setembro como Dia do Ouvidor de Vozes. Na data, são realizados encontros para quebrar tabus sobre o fenômeno. O HVM realiza ainda um congresso global, que acontece anualmente. Em 2022, o evento foi no Brasil.

Esta reportagem foi produzida como parte do 7º Programa de Jornalismo de Ciência e Saúde da Folha de S.Paulo, que teve apoio do Instituto Serrapilheira, do Laboratório Roche e da Sociedade Beneficente Albert Einstein.

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