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Vício em dopamina vira preocupação das redes sociais, mas não de cientistas

Especialistas dizem ser enganosa a ideia de que a compulsão se dá por causa do neurotransmissor, quando a realidade é muito mais complexa

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Dana G. Smith
The New York Times

O neurotransmissor dopamina anda suscitando muito pânico.

Segundo livros, artigos e postagens nas redes sociais, a razão porque queremos devorar cookies e passar tempo demais no Instagram é o desejo de uma dose rápida de dopamina. Se continuarmos a ceder a esses desejos, diz esse raciocínio, nunca vamos conseguir nos controlar.

"De um lugar de escassez, convertemos o mundo em um lugar de abundância avassaladora", escreveu a psiquiatra da Universidade Stanford Anna Lembroke em seu best-seller "Nação Dopamina" (Vestígio, 2022). Graças a isso, todos corremos o risco de cair no "consumo excessivo compulsivo".

Ilustração dopamina
A dopamina nem sempre é maléfica - Simone Noronha/NYT

Uma tendência de autoaprimoramento chamada "jejum de dopamina" que surgiu em 2019 gira em torno de se abter de qualquer coisa que provoque a liberação da substância. A ideia por trás disso é que os entretenimentos da era moderna modificam o cérebro de tal modo que os passatempos mais tranquilos já não são sentidos como prazerosos.

Vídeos marcados como #dopamina, muitos deles supostamente ensinando o espectador como manipular a substância cerebral, já foram vistos mais de 700 milhões de vezes no TikTok. Um influenciador oferece "uma lista gratuita de coisas que entorpecem a dopamina", para que você possa "retomar o controle de sua vida".

Pais chegam a ser aconselhados a evitar que seus filhos experimentem picos de dopamina (o que significa não deixá-los jogar videogames ou comer porcaria), caso a necessidade insaciável do neurotransmissor alimente maus comportamentos.

Cientistas que estudam a dopamina dizem que essas preocupações foram fortemente exageradas. Segundo Vijay Namboodiri, professor assistente de neurologia na Universidade da Califórnia em San Francisco, essas ideias "não são necessariamente baseadas no que é cientificamente sabido sobre a dopamina".

Antes de você optar por evitar a dopamina –e qualquer perspectiva de sentir alegria na vida–, é importante entender as maiores ideias equivocadas sobre o neurotransmissor e o que as pesquisas indicam.

A dopamina não é inerentemente benéfica ou prejudicial

A ideia de que a dopamina produz sensações de prazer surgiu a partir de experimentos com roedores, e mais tarde humanos, que apontaram que o sistema do neurotransmissor é ativado quando os animais encontravam uma recompensa.

Comida, sexo, drogas e interações sociais desencadeavam a liberação de dopamina no cérebro, sugerindo que a substância neuroquímica é associada a qualquer resultado de bem-estar.

Mas após mais estudos na década de 1990, cientistas perceberam que a dopamina está mais estreitamente ligada à expectativa de uma recompensa do que à própria recompensa. A dopamina provoca o desejo de algo e a motivação de sair à procura desse algo, e não o prazer sentido.

"Pensamos que ela provoca algo como o desejo", diz Talia N. Lerner, professora de neurociência na Northwestern University. "Ela ensina o cérebro como prever suas necessidades e a tentar fazer seus comportamentos corresponder com nessas necessidades."

Uma substância neuroquímica que controla o desejo pode soar sinistra, mas buscar recompensas não é um problema por si só –tudo depende do contexto. Os animais –desde as abelhas melíferas até os humanos— desenvolveram sistemas de dopamina para motivá-los a buscar alimento e sexo, para poder sobreviver e se reproduzir.

"A dopamina é uma parte importante do porquê estamos aqui hoje", afirma Kent C. Berridge, professor de psicologia e neurociência na Universidade do Michigan. "Nossos ancestrais não teriam sobrevivido e evoluído sem a dopamina."

O neurotransmissor também é essencial para a aprendizagem. Nesse contexto, o elemento principal que leva os neurônios de dopamina a disparar é a surpresa, independentemente de o resultado ser recompensador ou decepcionante.

"A dopamina não lhe indica quando alguma coisa é boa ou ruim, propriamente dito, mas se é melhor ou pior do que você esperava que fosse", pontua Lerner. Esse surto de dopamina ajuda você a atualizar suas expectativas e potencialmente modificar seu comportamento para o futuro.

Uma liberação normal de dopamina não vai alterar seu cérebro

Devido ao papel da dopamina na motivação e aprendizagem, o receio é que atividades altamente estimulantes sequestrem o sistema neurotransmissor de tal modo que ele deixe de funcionar para recompensas menores, que fazem parte do dia a dia. Segundo esse raciocínio, uma pessoa viciada em videogames não achará graça em jogar Banco Imobiliário.

Essa preocupação se baseia em parte em dados científicos. O uso prolongado de drogas que provocam surtos enormes de dopamina, como a cocaína e as anfetaminas, pode levar o cérebro a fechar o acesso a alguns dos receptores sobre os quais o neurotransmissor age. Essa chamada tolerância faz com que uma dose maior da droga se torne necessária para gerar a mesma euforia.

Como videogames e pornografia podem gerar o hábito de seu consumo, alguns pesquisadores, incluindo Lembke, teorizaram que eles podem provocar sinais semelhantes de tolerância no cérebro. Porém, em entrevista ao New York Times, ela admitiu que essa teoria é deduzida a partir de estudos de drogas estimulantes e que não existem no momento evidências que a comprovem.

Por essa razão, Berridge e outros criticaram a ideia. Uma razão é que a quantidade de dopamina liberada em resposta a videogames, pornografia, redes sociais e junk food é substancialmente menor do que o que é liberado em resposta a drogas que provocam dependência.

E embora para algumas pessoas videogames gerem uma resposta de dopamina maior que os jogos de tabuleiro, isso não quer dizer que um jogo de tabuleiro libere menos do que no passado, e isso não se deve a uma alteração inerente no sistema de dopamina, diz Namboodiri. Também não quer dizer que pessoas que curtem videogames nunca mais vão querer jogar jogos de tabuleiro. A mesma coisa se aplica a comer doces versus comer uma fruta ou a assistir ao YouTube versus ler um livro.

Dar um tempo de videogames ou redes sociais pode ser uma boa ideia se você está querendo passar mais tempo fazendo outras coisas. Mas isso não porque você precise resetar seu sistema de dopamina, pontua Namboodiri. (Há motivos para pensar que nossa vida digital encurtou nosso tempo de atenção, mas essa é outra história.)

"Se o conselho que alguém está lhe dando sobre o que você deve fazer se mostra válido, independentemente de envolver dopamina, provavelmente é útil", indica Namboodiri. Mas ele destacou que os cientistas ainda estão longe de terem uma visão completa da dopamina e como manipulá-la no cotidiano das pessoas.

A dependência envolve mais do que apenas a dopamina

Alguns comportamentos recompensadores podem causar problemas na vida das pessoas. Embora atividades como jogos de azar, assistir a conteúdos de pornografia e jogar videogames não estimulem a liberação de tanta dopamina quando o consumo de drogas, podem levar a padrões de comportamento semelhantes aos que são vistos no transtorno de uso de substâncias –ou seja, continuar com a atividade a despeito de consequências negativas severas.

Mas essa é a exceção, não a regra. A maioria das pessoas não perdem seus empregos ou relacionamentos por conta dessas atividades, que não provocam impactos negativos sobre sua saúde. Aproximadamente 2% a 3% das pessoas que assistem a pornografia relatam ter ficado viciadas nesse comportamento. E entre 2% e 3% das pessoas que jogam games online são viciadas em jogos eletrônicos.

"Para algumas pessoas isso é um problema, sim", diz Berridge. "Não é um problema para a maioria das pessoas. Podemos funcionar no mundo e curtir este mundo rico em recompensas." Como é o caso da maioria das coisas ligadas à saúde, a chave é a moderação. Você não precisa se negar prazeres para ser uma pessoa boa ou saudável.

E, embora a dopamina esteja envolvida na dependência, a compulsão de usar drogas ou se masturbar é mais complexa do que um único neurotransmissor. "Dizer que isso se deve apenas à dopamina é supersimplificar", afirma Lembke.

Na realidade, tentativas experimentais de tratar a dependência com a alteração da atividade da dopamina no cérebro não surtiram efeito. Esses tipos de comportamentos compulsivos frequentemente são acompanhados também por outras doenças mentais ou por estresse extremo na infância.

"A não ser que você esteja usando uma droga como a cocaína, que é prejudicial à saúde em todos os sentidos, não há necessariamente uma maneira sadia ou não sadia de usar a dopamina", indica Lerner. "É uma questão de aprender. E você sempre pode aprender algo benéfico ou pode aprender algo prejudicial."

Ou, como disse Berridge, "a dopamina é nossa amiga, não apenas nossa inimiga".

Tradução de Clara Allain

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