Mulheres contam como romperam com padrões sociais e aprenderam a impor limites

Dizer não às convenções machistas é liberdade e conquista coletiva, dizem

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Curitiba

"É literalmente impossível ser mulher", diz a personagem da atriz America Ferrera, 39, no filme "Barbie", ao descrever as exigências sociais impostas às mulheres. Ser mãe, magra, bonita, bem-sucedida, agradável, diplomática e outras pesadas regras culturais recaem sobre nós. Por isso, impor limites às convenções machistas é caminho para autoconhecimento, liberdade e conquista coletiva.

A afirmação está em histórias de mulheres que vivenciaram as desigualdades de gênero. Ouvidas pela Folha, elas relatam suas experiências de romper com os padrões e entender o que é necessário para prosseguir e conquistar seu espaço, além das críticas.

"A crítica em cima da mulher é muito maior. E, pior, muitas vezes vem das próprias mulheres e de pessoas LGBTQIA+. Para o homem não tem críticas. Muita gente até admira porque acha que ele é ‘o maior’ por conseguir ter duas mulheres", diz a empreendedora Klayse Marques, 35, que viveu um relacionamento poliafetivo por três anos.

Fotografia em preto e branco mostra Klayse e Carolina se abraçando
Carolina Rizola e Klayse Marques (à dir.), que viviam um trisal, decidiram se separar do companheiro e continuam juntas - Instagram/kahmarques__

Neste período, o trisal teve dois filhos e dividiu sua história nas redes sociais. Além dos incentivos, ela aprendeu a conviver com os julgamentos. "As pessoas estão tão acostumadas a terem um relacionamento extraconjugal e a serem traídas que acham que a gente se submetia a isso para não perder o homem. Chegaram a dizer que só usamos ele para engravidar."

Há três meses, Klayse e Carolina Rizola decidiram se separar do então companheiro. "Colocam o homem como se fosse o centro da relação, e não é. Nosso relacionamento era de igualdade, a prova disso é que estamos juntas agora sem ele", fala.

"A mulher tem que começar a se colocar no lugar dela, que é onde ela quiser. Tem que assumir o papel de protagonista da própria vida. Correr atrás e buscar ‘o dela’, manter-se sozinha, cuidar-se, estar bem emocionalmente. Porque uma vez que ela consegue isso, ela tem tudo", observa Klayse.

As pessoas estão tão acostumadas a terem um relacionamento extraconjugal e a serem traídas que acham que a gente se submetia a isso para não perder o homem. Chegaram a dizer que só usamos ele para engravidar

Klayse Marques

empreendedora

Questionar os padrões e naturalizar a beleza fora do convencional é o trabalho da artista visual Priscila Barbosa, 33. "Pinto essas mulheres nas telas e nas ruas, mesclando tarefas domésticas com atividades de insurgência, mostrando a sutileza de como agimos coletivamente e nos levantamos."

A artista conta que para ter sua carreira precisou abrir mão de outras escolhas, mas que isso a deixa em paz e faz parte do processo de se priorizar e refletir sobre as próprias vontades. "Mas é preciso se fortalecer muito emocionalmente", ressalta.

Priorizar-se, observa Priscila, é um dos pontos mais importantes para as mulheres, e o mais difícil. "Há o discurso de ‘supermulher’, mas ninguém é capaz de dar conta de tudo. Por isso vemos cada vez mais mulheres exaustas. Elas são a mão de obra e as que criam as próximas gerações, que também serão engrenagens desse sistema."

Com a arte urbana, ela estabelece diálogos sobre os corpos femininos no espaço público. "Somente pela mobilização coletiva é possível ter força para quebrar padrões. Criar essa rede é fundamental para que possamos discutir, ouvir diferentes realidades, incentivar umas às outras e nos impormos."

É preciso, diz Priscila, fortalecer a ideia de pluralidade e perceber a força que existe na diferença. "As mulheres têm necessidades diferentes e nossa discussão não se fecha apenas em gênero, mas também em raça, classe, orientação sexual."

A artista Priscila Barbosa em seu ateliê na Mooca, na zona leste de São Paulo
A artista Priscila Barbosa em seu ateliê na Mooca, na zona leste de São Paulo - Priscila Barbosa/Arquivo Pessoal

O repensar dentro da própria feminilidade é um dos pontos discutidos pela socióloga Eliane Basílio, doutora em Tecnologia e Sociedade. Ela aponta a exclusão baseada em ideais construídos a partir da mulher branca, classe média, heterossexual, "mãe e esposa amorosa, bela, recatada e do lar".

Essa imagem, diz a socióloga, reflete o preconceito, inclusive no mercado de trabalho, "que é extremamente excludente, impiedoso, especialmente com as mulheres negras, pobres, indígenas, deficientes e trans, que sofrem muita violência e são extremamente discriminadas, pois ousam questionar todos os estereótipos".

Há o discurso de ‘supermulher’, mas ninguém é capaz de dar conta de tudo. Por isso vemos cada vez mais mulheres exaustas. Elas são a mão de obra e as que criam as próximas gerações, que também serão engrenagens desse sistema

Priscila Barbosa

artista visual

A problemática é reforçada por Renata Borges, 40, mulher e ativista transexual. "Percebemos a imposição de padrões dentro do próprio movimento LGBT, que possui adoração por corpos de musa. Mas não somos assim. Estas convenções são perversas, mais ainda com as mulheres trans e profissionais do sexo. Nos colocam como um produto, um produto de série."

Renata lembra que o movimento feminista só é completo quando inclui todas. "A mulher é cobrada em todos os momentos, e com a gente mais ainda, pois somos objetificadas."

A psicóloga Carla Françoia, doutora em saúde mental e sexualidade, explica que todas essas exigências integram uma construção social, cultural e histórica, retratando as mulheres como dóceis, gentis, emotivas, dadas aos cuidados de outros, como se não pudesse sair desse lugar.

"Muitas já romperam com isso, como mães solo de bebês nascidos de inseminação artificial, mulheres que ocupam lugares de chefia, que trabalham como operárias na construção ou as que deixaram seus filhos para o pai cuidar", afirma Françoia.

A especialista destaca que as imposições são fruto de uma sociedade machista e patriarcal, na qual é imposto às mulheres tudo que envolve ficar dentro de casa, no mundo privado. No entanto, elas podem trabalhar com o que quiserem, podem escolher ou não serem mães, cuidar ou não dos outros, serem ou não vaidosas.

Para isso, é necessário autoconhecimento e saúde mental bem equilibrada, pontua Renata Borges. "É preciso saber até onde vai nosso próprio limite. Hoje eu entendo que posso dizer não. Isso é nadar contra a corrente, mas também é nossa emancipação", conclui a ativista.

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