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33 homens para cada mulher: por que urologia é especialidade tão masculina?

Mulheres caminham para ser maioria no exercício da Medicina no Brasil, mas na área que cuida dos órgãos do sistema urinário e reprodutivo elas ainda são ampla minoria

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Giulia Granchi
BBC News Brasil

Em 1990, a médica Karin Anzolch, tornou-se a primeira mulher a conquistar o primeiro lugar na prova de título de especialista em urologia, área que cuida dos órgãos do sistema urinário e reprodutivo.

Foram 12 anos de formação: cinco anos de faculdade de medicina, mais três anos de residência em cirurgia —já que a urologia exige a especialização por englobar procedimentos cirúrgicos— e finalmente mais três anos de residência em urologia.

Apesar de um currículo bastante completo em mãos, sua busca pelo primeiro emprego só resultava em negativas.

"Passei meses procurando uma colocação, sem entender porque ninguém me aceitava", diz Karin.

Mulher recebendo atendimento de urologista
Urologia é a especialidade com menos profissionais do gênero feminino; são 171 mulheres e 5.649 homens - Getty Images

"Depois de mais de um ano de procura, escutei de uma mulher responsável por contratar médicos para uma clínica: 'Seu currículo é ótimo, mas ninguém quer uma mulher urologista atendendo seus executivos. Você ainda é jovem, deveria considerar outra especialidade'."

Assim como em outras áreas profissionais que historicamente foram consideradas 'masculinas', a medicina e a cirurgia enfrentaram uma evolução gradual para incluir mais mulheres.

A especialidade da urologia, situada dentro dessas disciplinas, ainda reflete resquícios dessa concepção, reforçados pela ideia limitada de que urologistas tratam apenas do aparelho genital masculino, quando na verdade abrange um espectro mais amplo de cuidados, incluindo o trato urinário e problemas relacionados, tanto em homens quanto em mulheres.

Segundo a Demografia Médica de 2023, é a especialidade com menos profissionais do gênero feminino.

São 171 mulheres e 5.649 homens, ou seja, há 33 homens para cada mulher na área.

O levantamento foi feito pela AMB (Associação Médica Brasileira) e pelo Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo), e se baseia no registro profissional de médicos e em outros estudos e levantamentos sobre os profissionais.

A urologia se destaca com a maior disparidade de gênero. Em seguida, a ortopedia e traumatologia apresentam uma relação de 12,5 homens para cada especialista mulher, enquanto na neurocirurgia, essa proporção é de 9,6 homens para cada mulher.

Especialidades onde a equiparação já aconteceu ou está muito próxima incluem a oncologia clínica, nutrologia e gastroenterologia. Já a pediatria, dermatologia e genética médica são campos onde as especialistas são majoritariamente mulheres.

Karin diz que a resistência que recebeu como urologista recém-formada por parte dos empregadores, às vezes, se estendia aos próprios pacientes.

"Alguns ficavam surpresos ao me ver no consultório, relutavam em ser atendidos por uma mulher, e uma minoria fazia comentários desrespeitosos."

Mais de 30 anos depois, o mesmo acontecia com Fernanda Orellana, médica urologista que se tornou especialista em 2020.

"Era mais comum durante a residência, no SUS (Sistema Único de Saúde), quando os pacientes não podiam escolher o médico e não esperavam encontrar uma mulher", conta Fernanda.

"Mas, em geral, com empatia e paciência, conseguia contornar a situação. Depois de uma primeira consulta, já era comum que o paciente procurasse por mim."

Ouvindo suas colegas médicas, Karin diz perceber avanços significativos, mas que ainda hoje tem dificuldade para conseguir credibilidade.

"As decisões são questionadas e, por vezes, a liderança de uma mulher não é bem aceita. Trabalhamos para ter a credibilidade necessária, enquanto os homens muitas vezes obtêm só por serem homens", afirma.

"Atender pacientes que me procuram pelo meu trabalho, independentemente do gênero, facilita muito as coisas."

Fernanda Orellana é branca, tem cabelos longos loiros e usa um jaleco branco
Fernanda Orellana, de 35, é medica urologista em São Paulo (SP) - Arquivo pessoal

Por que a urologia é tão masculina?

A presença das mulheres na profissão médica aumentou bem gradualmente no Brasil, como aponta um artigo científico a respeito dos desafios e barreiras que médicas enfrentam em áreas dominadas por homens.

Foi só em 2009, após mais de 200 anos de existência do curso no Brasil, que o número de novas médicas superou o de novos médicos, aponta a pesquisa, apresentada em um congresso da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) —e essa tendência continua.

A Demografia Médica estima que mulheres serão maioria, quando somadas todas as especialidades, a partir de 2024. Ainda assim, em algumas áreas, como a urologia, a diferença ainda é muito grande.

Um dos motivos está na formação exigida para se especializar neste campo.

O primeiro passo, após se graduar em medicina, é completar uma residência de cirurgia-geral, na qual as mulheres são a minoria (23,4%) dos profissionais.

"Durante toda a graduação, sempre quis me tornar cirurgiã, e, nos anos 1980, a ideia era ainda mais desafiadora", diz Karin Anzolch, que hoje tem mais de quatro décadas de carreira como urologista.

"Fui desaconselhada por colegas e familiares, porque era considerada uma especialidade difícil demais."

O estudo da Unicamp descreve que "acredita-se, ainda hoje, que os homens são mais aptos a exercer as áreas cirúrgicas que demandam mais concentração, tempo de dedicação dos profissionais e força física".

Outro fator desestimulante, aponta o documento, é a "dupla jornada [que] também está presente na realidade da maioria das médicas, já que, além de se dedicar à carreira, a maioria ainda tem que atuar no cuidado e educação dos filhos e no cuidado da casa".

"Existem estudos que mostram que as mulheres, para serem consideradas equivalentes aos homens em termos de trabalho e competência, muitas vezes precisam ter uma titulação duas vezes maior", diz a urologista Fernanda Orellana.

"Isso varia, mas às vezes, realmente precisamos fazer mais para alcançar o mesmo reconhecimento."

Há ainda outra barreira: a ideia de que a urologia trata exclusivamente de questões relacionadas ao sistema reprodutivo masculino.

A especialidade trata de condições que afetam tanto homens quanto mulheres, como problemas nos rins, bexiga, uretra, incluindo distúrbios urinários, pedras nos rins, infecções do trato urinário, câncer urológico e incontinência urinária —tanto em homens quanto em mulheres.

"Algumas mulheres, inclusive, preferem ser atendidas por médicas, o que nos proporciona uma vantagem", diz Karin.

"Muitas urologistas acabam se dedicando à urologia funcional e feminina para atender a essa demanda específica."

Grupo de apoio

Para apoiarem umas às outras nesta área onde são minoria, as mulheres urologistas criaram um grupo carinhosamente chamado de "As Orquídeas".

Segundo Karin, o nome do grupo começou como uma brincadeira, mas hoje carrega um significado importante.

"A orquídea, apesar de ter esse aspecto de delicadeza, é uma das mais resistentes na natureza", diz.

"Os locais onde cresce e se desenvolve, muitas vezes com muito poucos nutrientes, representa cada uma de nós, em sua diversidade, resiliência e singularidades."

O grupo se reúne em congressos de Urologia e tem um canal no WhatsApp para troca de ideias, discussão de casos, dúvidas e experiências.

Com a desconstrução gradual do estigma de 'especialidade masculina', a médica observa um aumento no interesse de médicas e cirurgiãs recém-formadas pela urologia.

"É uma comunidade que oferece apoio médico, aconselhamento e até mesmo indicações de profissionais", diz Fernanda Orellana.

"Pode ser útil para médicas em formação ou residentes que têm dúvidas sobre a escolha de subáreas dentro da urologia, por exemplo."

Hoje, há 144 profissionais registradas no Orquídeas, entre médicas formadas e residentes. "No WhatsApp, esse número é maior, somos 276", diz Fernanda.

O levantamento também aponta que o Sul tem o maior número de profissionais, e o Norte, o menor.

Acre, Amapá, Rondônia e Tocantins são estados onde não há nenhuma urologista mulher como integrante do grupo.

A maior concentração está em São Paulo (35), Rio Grande do Sul (21), Rio de Janeiro e Minas Gerais (ambos com 14 urologistas registradas).

As áreas mais comuns de atuação de participantes do grupo são urologia geral, urolitíase (que trata pedras nos rins) e disfunções miccionais (que trata alterações no ato de urinar).

A presença de médicas mulheres é menor na estética masculina e na uroginecologia (que foca problemas relacionados ao útero, reto, intestino e bexiga nas mulheres).

Às estudantes e novas médicas que podem se interessar pela Urologia, Karin Anzolch deixa uma mensagem encorajadora.

"No início, era como navegar por uma floresta escura. Hoje, as mulheres na urologia já conquistaram muito espaço", diz

"Se você se encantar pela urologia, ela também é para você. Quanto mais mulheres se destacarem e contribuírem para a especialidade, melhores serão as oportunidades para todas."

O texto foi publicado originalmente aqui.

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