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Dinâmica de aplicativos de relacionamento causa frustração em mulheres

Para especialistas, sensação de ser 'mercadoria' e forma como as pessoas se apresentam geram decepção

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São Paulo

Aquele momento de baixar aplicativos de relacionamento, como Bumble e Tinder, chega para grande parte das pessoas. Os motivos são vários diante da sociedade em que vivemos, imersa no mundo digital: falta de tempo, grupo de amigos reduzido, facilidade para conhecer gente nova e por aí vai.

Todas essas circunstâncias levaram Júlia Duarte, 29, a utilizar um aplicativo do tipo pela primeira vez em 2014. Ela diz que foi um ponto fora da curva porque, logo em seu primeiro encontro, conheceu um homem com quem namorou durante um ano e meio.

Com o relacionamento, se afastou da plataforma. Mas, depois do término, voltou a baixar e a excluir o app várias vezes.

Para especialistas, junto com esse movimento de vai e vem, frequente em que usa aplicativos de relacionamento, desenvolve-se uma frustração que surge de forma diferente, e até mais intensa, nas mulheres.

Quem entra nesses aplicativos já deve saber que a rejeição é uma consequência, diz a psicóloga Valeska Zanello. Nem todo mundo vai dar match ou continuar a conversa. Mas muitas mulheres se veem decepcionadas com esse tipo de dinâmica. "Não é só sobre o amor não ser recíproco, mas o que é colocado em xeque em termos da identidade dessa mulher", diz.

"Em geral, ela não fica triste só porque aquele sujeito não deu o que ela estava esperando. Ela começa a pensar que há algo errado com ela porque a nossa autoestima é terceirizada", afirma a psicóloga.

Uma mulher de cabelos cacheados e óculos está sentada em um sofá, usando um smartphone. Ela veste uma camiseta branca com um pequeno texto no peito. Ao fundo, há uma planta pendurada e uma porta aberta que revela um cômodo iluminado. A parede ao fundo é branca e há um quadro pendurado.
Júlia Duarte, 29, baixou um aplicativo de relacionamentos pela primeira vez em 2014 e, desde então, instalou e desinstalou algumas vezes a plataforma - Rafaela Araújo/Folhapress

Para a psicóloga, a questão tem a ver com o processo de socialização das mulheres e da forma de amar que lhes é ensinada. Tudo isso dentro da lógica do que ela chama de "prateleira do amor", termo que dá título ao seu livro "A Prateleira do Amor: Sobre Mulheres, Homens e Relações" (Appris Editora, 2022). Nele, a especialista aborda a diferença de investimento que o amor romântico tem para as mulheres e para os homens.

Um dos aspectos importantes da "prateleira do amor", afirma Zanello, é que o selo de sucesso para mulheres é ser escolhida —muitas vezes sem nem se importar por quem. "Isso também dá poder aos homens", diz.

Sendo assim, é comum ver nesses aplicativos eles fazendo mil exigências sobre como espera que a mulher com quem ele se relacione seja, e mais raramente as mulheres fazendo isso. "A prateleira do amor cria uma hierarquia que elegem os homens como avaliadores físico e moral das mulheres, vulnerabilizando essas mulheres", afirma a psicóloga.

Para a psicóloga Fabiana Coelho, isso tem a ver também com o capitalismo emocional, termo que a psicoterapeuta Esther Perel pegou emprestado da socióloga Eva Illouz para falar sobre relacionamentos amorosos e como eles se assemelham cada vez mais aos relacionamentos profissionais. "Ao entrar no aplicativo, a gente tem que se tornar basicamente uma commodity e se fazer desejável para o outro", observa Coelho.

E quando essa "transação comercial" não é bem sucedida, a autoestima da mulher fica ameaçada. "Eu vejo isso no meu consultório, é muito palpável. As mulheres perguntam volta e meia ‘o que é que tem de errado comigo?’. Elas sentem que estão fazendo alguma coisa errada por não estarem em um relacionamento", diz a psicóloga.

A rejeição na vida amorosa é um grande dilema na vida das mulheres, diz a influenciadora Bárbara Marcondes, 27. "É claro que o ego delas vai ser ferido se, de repente, o cara não gostou o suficiente dela para chamar de novo. Ou que se perdeu o interesse, elas querem muito saber a razão, como se fosse culpa delas", diz ela com experiência de quem coleciona histórias de suas seguidoras.

Marcondes faz vídeos para o TikTok, rede social na qual tem mais de um milhão e meio de seguidoras, sobre seus relacionamentos e os de outras pessoas.

Mas ela mesma diz levar os aplicativos, como o Tinder, de forma mais casual. Marcondes ficou solteira há dois anos e, depois de dois meses, baixou o aplicativo. "Eu não me importava se o cara me chamava ou não, para mim era na base da leveza e da diversão", diz. "Entro meio sem pretensão, conheço alguém legal, mas não coloco tanta expectativa, que acho que é o que acontece com a maioria das meninas."

Marcondes afirma que muitas entram no aplicativo para suprir algo em si. "A galera quer muito procurar essa validação no outro em vez de procurar em si mesma", diz.

Faz dois anos que Júlia Duarte baixou novamente o Bumble, depois de idas e vindas no aplicativo. Mas, dessa vez, ela deixou de lado um ingrediente importante para a receita da frustração: a expectativa.

"A gente espera que vai encontrar tudo o que a gente imaginou assim que o match acontece, mas tudo o que a gente imaginou está dentro da nossa cabeça, a gente não conheceu aquela pessoa ainda", diz.

Júlia Duarte, 29, segura um celular aberto em aplicativo de relacionamento. - Rafaela Araújo/Folhapress

"O que mudou mais na minha perspectiva era o que eu estava procurando. A maioria das vezes que eu entrava no aplicativo, era com a cabeça de: ‘vamos ver o que tem por aí'", conta.

Então, ela entrou no aplicativo, falou com algumas pessoas e teve outra virada de chave. "Eu achei que estava entrando para uma coisa, mas eu precisava aprender outra, que era como me relacionar de fato."

Duarte brinca que tem os aplicativos de relacionamento como Duolingo do amor. "Da mesma forma que você usa o Duolingo para aprender um novo idioma, eu acho que a gente deveria entrar nos aplicativos de namoro para aprender a lidar com o outro, não necessariamente para encontrar a pessoa com quem vai trocar de estado civil". Esse pensamento a levou, por exemplo, a fazer um melhor amigo depois de um encontro que não deu muito certo romanticamente.

Mas antes de isso acontecer, ela conta que passou por um processo de autoanálise. Esse conhecimento é importante para seguir nos aplicativos de namoro e amenizar o que ele pode trazer de ruim, segundo Valeska. "No caso das mulheres, vai depender muito do quanto elas têm de letramento de gênero e usar de uma maneira favorável a elas", afirma a psicóloga.

Como a vida não é um filme de comédia romântica e as chances de esbarrar com o amor da sua vida na rua são baixas, os aplicativos acabam sendo uma das principais saídas para conhecer gente. Além do autoconhecimento, outras dicas que as especialistas dão são: pelo menos tente entrar no aplicativo; ao entrar, busque sair dele o mais rápido possível —ou seja, marcando encontros e evitando o acúmulo de matchs; aprenda a se nutrir afetivamente de outras fontes que não sejam apenas o amor romântico.

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