Descrição de chapéu
Carol Tilkian

Precisamos abrir mão de fantasias para vivermos amores possíveis

Estamos tão presos ao papel de vítima, sonhando com o encaixe perfeito, que confundimos falta de reciprocidade com ausência de espelhos

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Carol Tilkian

É psicanalista, pesquisadora de relacionamentos, escritora e palestrante. Fundadora do podcast e do canal Amores Possíveis e professora da Casa do Saber

Nosso amor poderia ter como título "Não aguento mais não aguentar mais", refletindo a crise de exaustão emocional semelhante à geração burnout descrita por Anne Petersen.

Encontrar e manter um amor que valha a pena parece cada vez mais difícil. Encontrar e manter qualquer amor parece cada vez mais difícil. Solteiros se queixam das relações superficiais e do desinteresse. Criar e manter conexões beira o impossível.

Ilustração em pixel art de um coração vermelho com uma unidade branca nele. Ele está posicionado na parte inferior e perto do centro da imagem. O fundo é cinza.
Carvall

Essa dificuldade de manutenção também atinge casais. Segundo o IBGE, 1 em cada 2,3 casamentos termina em divórcio, e quase metade dura menos de dez anos. Rapidamente, o "lar doce lar" torna-se amargo, e ficamos presos ao luto das fantasias do casal feliz que fomos ou que poderíamos ter sido.

Escuto a angústia dos desencontros de sonhos e rotinas, e a presença marcante das faltas –de carinho, conexão e presença.

Nunca tivemos tanto acesso a tantas pessoas e a tantas formas de amar, mas nunca sentimos tanta falta de amor. Será que nos falta amor ou será que estamos presos a ideais românticos que nos impedem de viver amores possíveis?

Falamos de relações livres, mas continuamos amarrados a fantasias, sejam elas felizes ou fatalistas. Sartre disse que "o inferno são os outros", e 2024 trouxe termos como heteropessimismo e boysober, confirmando que nos unimos contra um inimigo comum: o outro que não aprofunda ou que não entende.

Mas será que ele realmente não entende ou apenas não se encaixa na fantasia que criamos? Estamos tão presos ao papel de vítima, sonhando com o encaixe perfeito, que confundimos falta de reciprocidade com ausência de espelhos. O que nos machuca é o outro não amar no nosso ritmo, no nosso jeito. Você, que enchia a boca para se autodenominar um dos últimos românticos, talvez seja apenas mais um dos muitos narcísicos.

Por medo de perder tempo e de nos machucarmos, perdemos oportunidades de nos conectarmos com o estranho (no outro e em nós). Saímos do mar sem atravessar a arrebentação e, frustrados, reclamamos que as relações estão rasas. Elas estão rasas ou nós estamos ansiosos, defendidos e pouco resilientes?

Djavan canta que "não existe amor sem medo" e eu o complemento dizendo que não existe amor sem caldos, sem angústia, sem atritos e sem desencontros. Não existe amor sem nos assumirmos estrangeiros uns dos outros e sem entendermos que não existem certezas absolutas nem possibilidade de controle. O amor é uma aposta, mas não precisa ser um jogo.

Em vez de esperar por um amor que magicamente acontece, te convido a entender que o amor intencionalmente acontece. É ação, não sentimento, e se constrói no cotidiano, não em rompantes mágicos. Amor possível é aquele que acolhe o "eu te amo, mas não sempre", que sustenta o desejo dividido, respeita os segredos do outro e aceita as oscilações.

Bachelard disse que "só continua o que é descontinuado", e eu acredito que os amores possíveis são compostos de começos e fins intercalados, onde decidimos focar no que ganhamos, e não no que perdemos. Um relacionamento se mede não pela ausência de desencontros, mas pela capacidade de superá-los e de reinventar a rota.

Te convido a juntar os cacos do seu coração e do seu espelho quebrado e, em vez de colá-los numa fantasia perfeita, te proponho brincar de amor caleidoscópio: ora as peças estão próximas, ora afastadas. Não há gabarito, nem ponto de chegada, só uma travessia conjunta, mais sentida do que compreendida, onde o amor se constrói nesse espaço de incerteza. Talvez o amor mais fantástico seja aquele que se constrói sobre essa base instável, mas incrivelmente real.

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