Pesquisadores enfrentam via-crúcis para estudar maconha no Brasil

Acusadas por ministro de abrigar plantações extensivas, universidades têm acesso escasso à Cannabis

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Brasília

As declarações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, de que universidades federais abrigariam extensivas plantações de maconha contrastam com as dificuldades enfrentadas por pesquisadores que tentam estudar a Cannabis.

“Senhor ministro, se as universidades federais tivessem ‘extensivos cultivos’ de cannabis a saúde pública estaria em melhores condições”, escreveu em rede social Virgínia Carvalho, coordenadora do projeto Farmacannabis, que analisa extratos à base de canabidiol na UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

Além do preconceito com o tema, a necessidade de obter autorizações da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) e de instituições de ensino, o custo dos insumos e as dificuldades para financiar as pesquisas são apontados como entraves.

“É uma série de instâncias que acaba fazendo com que a pesquisa com Cannabis fique impraticável. Já vi pesquisadores que foram estudar álcool ou nicotina porque não conseguiram pesquisar algo que, na prática, está em toda esquina”, diz Renato Filev, pesquisador da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo). O acesso à planta é, hoje, um dos principais obstáculos. 

Cientista da empresa Entourage Phytolab que, em parceria com a Unicamp, desenvolve um extrato concentrado de Canabidiol
Cientista da empresa Entourage Phytolab que, em parceria com a Unicamp, desenvolve um extrato concentrado de Canabidiol - 25.set.2019 - Adriano VizoniFolhapress

A legislação brasileira permite que a União autorize o cultivo de Cannabis para fins de pesquisa e uso medicinal, mas não há uma regulamentação sobre o tema. Na prática, nenhuma instituição do país tem aval para isso, de acordo com a Anvisa.

O número de novas autorizações especiais de pesquisa também é baixo. Dados da agência mostram que, desde 2010, foram apenas 22 novas autorizações desse modelo —a Anvisa não informa quantas foram para universidades.

Sem acesso, a maioria dos pesquisadores precisa recorrer à importação ou solicitar à polícia plantas de apreensões —material que, embora ajude, nem sempre é rápido de ser obtido ou adequado à pesquisa final. 

“Um padrão de referência certificado de canabinoide ácido que eu uso na minha metodologia, de 1 miligrama, custa R$ 7.000 para importar. É muito caro. É uma substância pura que usamos para fazer controle de qualidade ou perícia criminal. Mas não temos isso no Brasil”, diz Carvalho, que faz pesquisas na área forense, além de analisar e desenvolver extratos de Cannabis.

Há dois anos, ela iniciou um projeto para dar apoio a famílias que tinham aval judicial para cultivo em casa para uso medicinal. Atualmente, o grupo recebe a planta e produz extratos à base de canabidiol. O projeto é acompanhado pelo Ministério Público Federal.

Segundo Virgínia, essa tem sido a única maneira de estudar a Cannabis —ainda assim, com limitações. 
“Chegamos a receber um financiamento de um instituto privado, mas recebemos a resposta de que a atual situação político-regulatória impediu que ele seguisse”, diz. 

Ela se refere aos embates entre o governo e Anvisa na regulação do tema. Em julho, a agência sinalizou que autorizaria o plantio de Cannabis no país por empresas para pesquisa e produção de medicamentos.

A medida poderia incluir universidades, caso se adequassem às normas exigidas. Mas o debate travou após pedido de vista de dois diretores, e em meio a críticas do governo. A discussão deve ser retomada nesta terça-feira (3). 

Para Filev, da Unifesp, a situação é de espera. Nos últimos dois anos, ele não conseguiu acesso ao insumo a tempo de cumprir o prazo de um edital de financiamento para a qual sua pesquisa de pós-doutorado havia sido selecionada.

Agora, estuda maneiras de terminar os estudos. Uma das alternativas em análise é entrar na Justiça para obter aval ao cultivo em conjunto com outros pesquisadores que passam pelo mesmo tipo de entrave.

“Da mesma forma que existem habeas corpus hoje para resguardar famílias que plantam para fins terapêuticos, a ideia é fazer a mesma coisa em nome da ciência”, diz ele, que cita casos em que pesquisadores recorrem à compra ilegal para poder continuar os estudos.

Na UnB (Universidade de Brasília), a coordenadora do Centro de Referência sobre Drogas e Vulnerabilidades Associadas, Andrea Gallassi, esperou três anos para ver sua pesquisa que visa testar o uso de canabidiol em usuários de crack poder sair do papel.

O motivo era a necessidade de obter autorizações e recursos para financiar a importação de 200 frascos de canabidiol, ao custo de US$ 229 (R$ 971) cada um.

“O processo burocrático é desanimador. Recebo dezena de emails de colegas de universidades querendo saber como eu consegui”, diz.

Sem recursos do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), a pesquisadora recorreu à Fap-DF (Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal). Mas o valor ficou aquém do necessário.

A saída foi via emenda parlamentar. No ano passado, ela conseguiu o dinheiro com a ajuda do ex-deputado federal Jean Wyllys (PSOL-RJ).

Cultivo in vitro de Cannabis com partes da planta na UFSJ
Cultivo in vitro de Cannabis com partes da planta na UFSJ - Divulgação

“Foi difícil encontrar apoio para ajudar. É uma substância proibida, há preconceito e informação equivocada sobre o assunto”, afirma.

Ajudar a destravar as pesquisas é um dos objetivos de um projeto da UFSJ (Universidade Federal de São João Del-Rei). 

Em 2017, depois de dois anos reunindo documentos, a universidade foi uma das primeiras a obter autorização da Anvisa para cultivo —mas in vitro, e só com partes da planta.

Na prática, em vez de uma plantação, o que se vê são potinhos enfileirados usados para produzir células e tecidos da Cannabis. O objetivo é, no futuro, produzir canabidiol em quantidade suficiente para que as universidades não tenham que importar.

A produção ainda é limitada. “Falar em plantação é algo quase que inimaginável para nós. Diante da restrição que temos para produzir somente in vitro, imagina em larga escala?”, questiona a professora Vanessa Stein, uma das coordenadoras do projeto.

Na UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais), o professor Fabrício Moreira até tentou obter recursos via CNPq, mas o conselho não abriu edital para o envio de projetos. A pesquisa de Moreira estuda como o canabidiol funciona contra a epilepsia.

 

“No meu laboratório, a situação está complicada. Não fechamos as portas, mas o laboratório que coordeno e vários outros se perguntam até que ponto vamos conseguir continuar.”

Sem dinheiro público, uma alternativa seria recorrer a investidores privados. Mas, segundo Moreira, a retórica agressiva do governo afasta empresários.

Para Carvalho, da UFRJ, parte das dificuldades tem um ponto em comum: o preconceito. “E ele existe dentro da universidade também. Alguns não gostam e desconfiam do que você está fazendo. Outros acham que você é maconheiro”, diz ela.

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