Descrição de chapéu Coronavírus Fome na Pandemia

Demora nas ações de auxílio e invisibilidade de grupos agravam fome

Restrições chegaram antes que ajuda; auxílio federal começa a ser pago mais de 2 semanas após início de quarentena e muitos podem ficar de fora

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George Souza, 29, desempregado, com seu filho no colo, pede ajuda aos motoristas em frente a um supermercado na avenida Senador Teotônio Vilela, na zona sul de São Paulo

George Souza, 29, desempregado, com seu filho no colo, pede ajuda aos motoristas em frente a um supermercado na avenida Senador Teotônio Vilela, na zona sul de São Paulo Lalo de Almeida/ Folhapress

São Paulo

As principais medidas para garantir a alimentação e despesas básicas durante a quarentena contra o coronavírus só chegaram semanas depois do início do isolamento e ainda podem deixar de fora pessoas pessoas em situação de vulnerabilidade.

Seguindo recomendações de autoridades médicas para diminuir a curva de transmissão da doença, os governos estaduais e municipais anunciaram medidas de fechamento de estabelecimentos comerciais e escolas. Só mais de duas semanas depois, no entanto, as principais medidas de combate à fome e pobreza começam a de fato beneficiar a população.

Com o descompasso, autônomos e moradores de rua ficaram sem dinheiro para comprar comida e crianças, sem as refeições que faziam na escola, conforme a Folha vem mostrando na série Fome na Pandemia, dividida em cinco partes (veja lista abaixo). Parte das autoridades sustenta que já vinha desenvolvendo ações de suporte e que, pela situação atípica, algumas medidas levam tempo.

Há ainda muitas pessoas em situação de vulnerabilidade podem não ser abrangidas por serem invisíveis para os programas, seja por falta de documentos, seja por não estarem presentes nos cadastros exigidos, como o Cadastro Único, segundo entidades que auxiliam esses grupos.

A medida mais aguardada, um auxílio de R$ 600 prometido pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido), só começou a ser pago nesta quinta-feira (9) a parte da população—17 dias após São Paulo, epicentro do coronavírus, iniciar medidas de isolamento. Bolsonaro sancionou a medida no dia 1º, 48 horas após recebê-lo, tendo sido alvo de uma série de críticas sobre a demora em relação ao assunto.

Parte da população vulnerável, sem conta no banco ou cadastro, não receberá imediatamente, uma vez que haverá um escalonamento. Há ainda o temor de que elas acabem excluídas, devido à burocracia do processo, que inclui, por exemplo, a exigência de regularizar o CPF.

Enquanto a situação se arrasta, pessoas como George Souza, 29, vêm a vida piorar. Ele, que vivia de bicos como ajudante de pedreiro, ficou sem renda e mantimentos. Há duas semanas tem ido a mercados em Parelheiros, na zona sul, pedir doações acompanhado do filho de dois anos, que na última semana não tinha nem uma fralda sequer para usar. "Agora, consegui pelo menos um pouco de arroz e um leite", diz ele, segurando o coelho de pelúcia que carrega para entreter o menino.

Moradora de uma favela na Brasilândia (zona norte de SP) e mãe de nove filhos, Luciana dos Santos, 45, já precisava vasculhar caçambas de lixo de supermercados para pegar produtos para comer antes da quarentena. Agora, com cinco de seus filhos fora da escola, a situação ficou mais difícil ainda. "Quando as crianças comiam na escola, pelo menos vinham de barriga cheia por causa da merenda."

Na semana passada, ela voltou às caçambas, mas, dessa vez, nem lá encontrou algo para alimentar a família. Beneficiária do Bolsa Família, ela seria apta de atendimento pelo auxílio emergencial do governo federal. Mas diz não ter como esperar mais. "Não tenho mais o que fazer, agora só estou esperando alguma ajuda", diz.

Entre os moradores de rua, a esperança em relação ao auxílio federal é tão grande quanto a falta de informação. Gabriel Souza da Silva, 23, trabalha como carregador de caminhões próximo do Mercado Municipal de São Paulo. Ele mora na rua e, com a diminuição do serviço, passou a depender mais de doações para comer, o que nem sempre consegue.

"Queria saber como receber essa bolsa do governo, porque está muito difícil", diz ele, que tem se alimentado por meio de doações de um grupo de frades no Largo São Francisco. Sem acesso a internet, ele não tem como baixar o aplicativo para se inscrever para o recebimento e não tem ideia de se sua documentação está regularizada.

Professor da PUC-SP na área de teologia e pesquisador sobre a população de rua, Eulálio Figueira diz que, apesar do ineditismo da situação, os moradores de rua deveriam ter sido atendidos logo e ouvidos sobre suas necessidades na hora de estabelecer políticas públicas.

"Uma coisa é fazer quarentena, outra coisa é fazer quarentena debaixo de uma marquise ou debaixo de um pontilhão. Teria que se ter pensado, muito concretamente, nessa população", afirma Figueira. Segundo ele, embora algumas ONGs tenham esse diálogo direto, essa função é do Estado, que não desempanha o papel.

Com alvo em moradores de rua, o governador João Doria (PSDB), aumentou a ação da Rede Bom Prato, estendendo o atendimento para o jantar e finais de semana, embora a medida tenha entredo em vigor pouco mais de uma semana após a quarentena.

Agora, redes de auxílio aos moradores de rua cobram uma isenção na tarifa de R$ 1 por refeição. Segundo o padre Julio Lancelloti, na atual situação, muitos moradores de rua não têm conseguido nem R$ 2,50 por dia para tomar café da manhã, almoço e jantar no equipamento. Sem poder pagar esse valor, eles se aglomeram em serviços da Igreja Católica, que não conseguem atender a todos.

Lancelloti diz ainda temer que vários moradores de rua possam deixar de receber a ajuda federal, pela falta de documentos ou de cadastro.

MERENDA

Na periferia, crianças passaram a viver uma dieta restrita, que em alguns casos podem se limitar apenas a arroz. Isso porque creches e escolas foram interrompidas e suas famílias, sem trabalho fixo, também deixaram de ter renda, conforme a Folha mostrou nesta semana.

Medidas de maior impacto para este público começaram a se materializar só nos últimos dias, após resolução de questões operacionais sobre como, por exemplo, fazer esse pagamento.

Na capital paulista, a gestão Bruno Covas (PSDB) começou a fazer depósitos de uma ajuda entre R$ 55 e R$ 101 para crianças no fim da semana passada. O valor é para ajudar as famílias a comprar alimentos para as crianças. No governo estadual, os valores, de R$ 55, passaram a ser pagos nesta semana.

Para a defensora pública Ana Carolina Schwan, o ideal seria que houvesse uma medida que atendesse essas crianças logo após a interrupção das aulas, mas é até compreensível diante da atipicidade da situação tenha havido um tempo de preparação.

No entanto o que para ela parece mais preocupante é o padrão de corte feito pelo governo estadual e municipal, que estabelece que os beneficiados serão as famílias parte de cadastros de assistência e Bolsa Família. A pedido dela, a Justiça determinou que o voucher seja estendido a todos os estudantes da capital e do estado de SP no prazo de dez dias, mas cabe recurso.

A vice-presidente do Conselho de Alimentação Escolar da capital, Márcia Simões, afirma também ter percebido que a nota de corte deixou de fora famílias necessitadas.

Ainda entre medidas na capital, o secretário municipal de Desenvolvimento Urbano, Fernando Chucre, afirma que a gestão Covas lançou um programa para distribuir cestas básicas, que vai coordenar doações, em parceria com a sociedade civil.

Segundo o secretário, antes disso já houve aumento da distribuição dos alimentos, mas agora haverá um processo organizado para evitar que locais com maior visibilidade sejam mais beneficiados, enquanto outros fiquem desassistidos.

A gestão também abriu um edital para a criação de restaurantes populares, embora este tipo de processo não costume ser concretizado rapidamente.

Nesta terça (7), Doria também anunciou parceria com a iniciativa privada para a doação de 1 milhão de cestas básicas de tamanho reforçado, para durar um mês para quatro pessoas. Contudo elas devem começar a chegar só a partir do dia 17.

"Infelizmente com pandemia, muito mais gente está precisando de assistência financeira e alimentos", afirma a secretária de Desenvolvimento Econômico, Patrícia Ellen. Segundo ela, estão sendo mapeados os atingidos pela crise.

O governo afirmou em nota que vem tomando tomando medidas para mitigar efeitos sociais da crise do coronavírus concomitantemente às medidas de restrição de circulação, citando suspensão de cobrança de tarifa social de água, protestos de dívidas, garantia de gás encanado a quem tem o serviço, isenção de taxa de luz, entre outros.

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