Descrição de chapéu Coronavírus Fome na Pandemia

Sem comida, estrangeiros de SP pulam refeições e já voltam para seus países

Oficinas de costura e comércio parados levam renda embora; hoje muitos dependem de doações

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A congolesa Sylvie Mutiene, 37, na casa onde mora com a família na zona leste de SP

A congolesa Sylvie Mutiene, 37, na casa onde mora com a família na zona leste de SP Lalo de Almeida

São Paulo

Assim que duas voluntárias chegam a uma residência coletiva de imigrantes no Bom Retiro, bairro da região central de São Paulo, uma longa fila começa a se compor para conseguir alimento. "É para cesta básica?", perguntam.

A decepção é nítida quando descobrem tratar-se apenas de um cadastro, mas continuam aguardando. Apenas naquele bairro, a lista de espera pela ajuda das voluntárias já supera cem pessoas, todas elas em busca dos mantimentos que já não têm em casa.

Sem saber o que comerão no dia seguinte, estrangeiros que vivem na cidade de São Paulo estão pulando refeições para economizar alimento, dependem de doações e já saem do país em ônibus de sacoleiros.

A quarentena, indicada por especialistas para reduzir a curva de contágio do novo coronavírus, também acertou em cheio os imigrantes —como a Folha vem mostrando na série Fome na Pandemia (veja lista abaixo), o isolamento afetou fortemente a dieta na periferia e de moradores de rua.

Porque muitos são autônomos, os estrangeiros ficaram sem renda mais rápido, e agora racionam a alimentação para fazer durar cestas básicas que ganham de voluntários.

A indústria da costura, um motor do Bom Retiro, parou após fechamento das lojas do varejo. Os costureiros, geralmente imigrantes de países vizinhos como Bolívia e Paraguai, viram o dinheiro contado do dia a dia desaparecer.

Casada com um costureiro, a paraguaia Lis Mabel Estigaribia, 24, mãe de uma menina de 11 meses, se viu obrigada racionar o que sobrou na despensa. "Não estamos tomando mais o café da manhã faz duas semanas", diz ela, há um ano no Brasil.

Ela vive em uma moradia coletiva onde dezenas de famílias estrangeiras habitam pequenos cômodos que também servem como oficina de costura —um ambiente onde é impraticável manter isolamento social recomendado contra o coronavírus.

Nesses locais, os costureiros e suas famílias passam as longas jornadas que muitas vezes superam 14 horas por dia, uma vez que o pagamento é por peça produzida.

A paraguaia Lis Mabel,24, com sua filha Liliam Rosana de 11 meses, no Bom Retiro
A paraguaia Lis Mabel,24, com sua filha Liliam Rosana de 11 meses, no Bom Retiro - Lalo de Almeida

Boliviana, Marlene Apaza, 24, vive em situação parecida com a de Lis Mabel. Mãe de crianças pequenas e casada com um costureiro, agora parado devido à quarentena, vem repetindo o cardápio todos os dias: arroz com ovo. Se as coisas continuarem como estão, sem ajuda, logo não terá nem isso.

A cunhada dela, Ruth Ianapa, 39, diz que nunca passou por uma situação tão complicada em seus 18 anos no Brasil. Segundo ela, o pouco dinheiro de reserva é gasto com o aluguel. "Aí o alimento falta", diz.

Cristian Leguizano, 35, paraguaio e também costureiro, conta que vários conhecidos já voltaram para o Paraguai. "Hoje saiu um ônibus de Guarulhos", diz. A reportagem ouviu vários relatos similares, de parentes e amigos de imigrantes voltando a países vizinhos.

Os paraguaios têm saído em ônibus de sacoleiros até Foz do Iguaçu (PR) para enfrentar uma longa jornada, que inclui ficar de quarentena até poderem entrar em seu país, que fechou as fronteiras.

Marlene Apaza, 24, com sua família em cozinha que também funciona como oficina no Bom Retiro
Marlene Apaza, 24, com sua família em cozinha que também funciona como oficina no Bom Retiro - Lalo de Almeida

Filha de paraguaios, a brasileira Patrícia Rivarola, 48, é voluntária na coleta de alimentos para ajudar essa população. "Em 13 anos atuando com eles, eu nunca vi uma situação dessa", diz ela, que se aproximou mais da comunidade após passar a frequentar o grupo folclórico Alma Guarani.

Com outros voluntários, como a paraguaia Monica Sanches, Patrícia distribuiu rapidamente cem cestas a pessoas sem comida no bairro. "Primeiro foram mães solteiras e com crianças. Esses que estão aqui são os que não estavam nesse critério", diz.

Segundo levantamento feito pela Folha em base em dados da Polícia Federal, nos últimos 20 anos, os bolivianos têm sido a nacionalidade estrangeria mais recorrente a chegar em São Paulo: quase 57 mil deles se registraram entre 1999 e 2019, época em que se expandiu muito a indústria da costura no Bom Retiro.

São bolivianos 20% do total de 281.625 estrangeiros de todas as nacionalidades registradas nesse período. O número é o dobro do segundo lugar da lista, ocupado pelos chineses, com cerca de 22 mil registros.

Morando em cubículos pouco arejados, esses bolivianos já começaram a ser vítimas do coronavírus.

Quando precisam de ajuda, é a Igreja Nossa Senhora da Paz, no Glicério, que os estrangeiros procuram. Ali, funciona a Missão Paz, da Igreja Católica, onde voluntários de cada comunidade atuam angariando e distribuindo comida.

Entre os que buscam o espaço, não há só sul-americanos. "Todos aqueles refugiados que trabalhavam como microempreendedores, com culinária, conheço vários que vieram pedir socorro. Tem do Congo, da Síria, da Venezuela, essas pessoas que tinham como se manter estão passando dificuldades", afirma o padre Paolo Parise, que atua na Missão Paz.

A congolesa Sylvie Mutiene, 37, por exemplo, vende comida típica em eventos, que deixaram de acontecer. Como o marido perdeu o emprego pouco tempo antes, a família ficou sem nenhuma renda.

Formada em direito, Sylvie veio do Congo há seis anos, fugindo da perseguição política ao marido, preso numa manifestação contra o governo. Ela e os filhos acabaram sendo vítimas da violência do Estado após o marido escapar da prisão.

Em São Paulo, como refugiada, Sylvie viveu em abrigo, trabalhou como ajudante, copeira e secretária. Teve uma filha brasileira, Beatriz, 5.

Até este ano, estava estabilizada financeiramente. Aí o coronavírus chacoalhou tudo. Agora, a comida que tem em casa é resultado de doações de entidades. As crianças sentem falta do frango e da alimentação típica do Congo.

Como não sabe quando conseguirá outra cesta básica, ela e o marido têm racionado o que consomem. "Eu e meu marido temos deixado de jantar", diz.

Sylvie se inscreveu para receber o auxílio emergencial do governo brasileiro. "Mas isso a gente não conta para comida, vai só com o aluguel", diz ela, que mora na zona leste com o marido, três filhos e outros parentes.

Ela se sente tão insegura quanto nos primeiros dias no Brasil. "Parece até que não que não evoluímos nada."

Beatriz, 5, filha da congolesa Sylvie, brinca com gato em rua da região de Aricanduva, na zona leste
Beatriz, 5, filha da congolesa Sylvie, brinca com gato em rua da região de Aricanduva, na zona leste - Lalo de Almeida

COMO AJUDAR

Missão Paz - Rua Glicério, 225, na entrada da secretaria, de segunda a sexta, das 9h às 11h e das 14h e às 17h. Antes de chegar, ligue para (11) 3340-6950

Materiais necessários

- Itens de higiene pessoal (sabonete, escova de dente, creme dental, absorvente feminino, lâmina de barbear)
- Material de limpeza (desinfetante, agua sanitária, luvas descartáveis,
- Alimentos não perecíveis

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