Descrição de chapéu Coronavírus

Diário da privação: Quero mostrar a quem me ajudou que não foi em vão

Após ser despejado e quase parar na rua com a família, na favela de Paraisópolis, desempregado tenta se reerguer com doações; leia o 5º e último relato

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São Paulo

Há uma semana, Hebert Douglas, 24, ensaia os primeiros passos para longe da miséria que quase o jogou na rua em meio à pandemia do novo coronavírus —que já matou 359 pessoas no país. Ao todo, são 9.056 casos confirmados de infecção.

Desempregado há um ano e meio, desde sexta-feira (27), ele faz um bico em um mercado na favela de Paraisópolis, na zona sul paulistana.

Sobrevivendo de trabalhos ocasionais —Hebert vendia água na rua—, foi despejado da casa de dois cômodos em que viva com a mulher e o casal de filhos pequenos. Sem renda, passou uma semana procurando um lugar para morar. Mudaram-se para um imóvel de mesmo tamanho sem saber como iriam pagar o aluguel de R$ 450.

Sua mulher, Regina Santos Silva, 24, fazia faxina em duas casas. Veio a pandemia e foi dispensada de ambas. De uma dia para outro, a renda da família passou de cerca de R$ 900 para nada. Assim como eles, rebaixamento do padrão de vida é realidade de 72% dos moradores de favelas, de acordo com o instituto DataFavela.

Na semana passada, a família recebeu barras de sabão e um frasco de álcool em gel para se proteger do coronavírus, doação obtida pela União de Moradores e Comerciantes e repassada para os mais necessitados da favela. A Folha os acompanha desde então.

Em meio ao cotidiano da pandemia e da privação de itens básicos de alimentação, leitores entraram em contato para ajudá-los. Entre mais de uma dúzia, uma delas depositou o equivalente a cinco meses de aluguel. Outra ofereceu a ele e à esposa o pagamento de cursos profissionalizantes.

O plano agora, diz Hebert, é se colocar de pé. Depois, caminhar. Se tudo der certo, para longe da miséria, de Paraisópolis e de São Paulo.

Essa semana inteira trabalhei no mercado. Não sei até quando, mas hoje sou repositor de mercadorias. Quero agarrar essa chance que me deram e, em um ano, ter feito um curso profissionalizante que me ofereceram, trabalhar e sustentar minha família.

Eu já cortei cabelo, então quero fazer um curso de cabeleireiro e começar a cortar por aqui. Se sobrar dinheiro, alugar algum ponto por aqui. Se não, pelo menos uma casa que tenha garagem para montar o salão.

Falei para minha mulher, ela poderia fazer um curso nessa área também para trabalharmos juntos. Quem sabe lá na Bahia. Em Irecê, a terra dela. Primeiro, preciso me formar. Ela também. Preciso aproveitar essa chance. Vou mostrar que não foi em vão, tá ligado?

Por exemplo, meu fogão só funciona uma boca. Vamos supor que eu comprasse um melhor, usado, eu vou filmar o meu e mandar o vídeo para quem está me ajudando. Roupa, relógio, sapato, nada disso interessa pra gente. Eu já não tinha antes, não vou ter agora. O importante é ter condições de a gente criar os filhos e ter comida.

Esse tempo vai passar. Quando passar tenho que estar pronto para cuidar deles por minha conta. Não vou esquecer.

Penso em sair de Paraisópolis, de São Paulo. Meu sogro trabalha numa roça. Lá vai ser mais fácil, de repente, abrir um salão, alugar uma casa.

Aqui na comunidade falta muita coisa. Lazer, educação, uma série de coisas, entende? Meus filhos vão crescer, e se não tiverem a cabeça boa, eu sei como é. Aparece um, oferece drogas, começa a aparecer coisas erradas demais. Não quero isso para eles. Sei como é. Não é o melhor lugar para eles crescerem.

Mas, primeiro, vou me formar.

​Hoje foi minha primeira folga no mercado. Aproveitei para arrumar o que falta na casa. Lavei a roupa de trabalhar e amanhã [sábado] estou lá. Quero que saibam que não vai ser em vão.

DIÁRIO DA PRIVAÇÃO

Em Paraisópolis, morador narra angústia de não ter comida, emprego e moradia definida em meio à pandemia

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