Descrição de chapéu Coronavírus

Diário da privação: Só queria viver em um lugar meu, sem passar tanta humilhação

Desempregada, faxineira vive efeitos da crise causada pela pandemia do novo coronavírus; leia o 3º relato

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São Paulo

“Na Bahia eu não teria saído da lama, do mesmo jeito que aqui”, diz a diarista desempregada Regina Santos Silva, 24. “Mas, São Paulo? É uma ilusão.” Há três anos, a baiana de Irecê (a 477 km de Salvador) vive na favela de Paraisópolis, na zona sul paulistana.

Casada com Hebert Douglas, 24, e mãe de um casal, ela é apenas uma dos milhões de brasileiros a sentirem os efeitos do novo coronavírus –que já causou 241 mortes no país e contaminou 6.836 pessoas até esta quarta-feira (1) .

Além do medo de se contaminar, a falta de trabalho causada pela pandemia por pouco não empurrou a família para a rua. O dono da casa de dois cômodos em que moravam os despejou e a família passou a última semana percorrendo a favela em busca de um novo lugar para viver. Entraram em outro imóvel de dois cômodos ainda sem saber como iriam pagar os R$ 450 de aluguel.

Desempregado há um ano e meio, Hebert vendia água nos semáforos do Morumbi, bairro nobre da zona sul, ao lado da favela. Sem ter a quem vender, restaram bicos ocasionais. Regina fazia duas faxinas por semana, pelas quais ganhava R$ 70 por dia. Foi dispensada de ambas.

Desde sexta-feira (27), Hebert conseguiu um bico em um mercado local. Um dia antes, a família recebeu barras de sabão e um frasco de álcool em gel para se proteger do coronavírus, doação obtida pela União de Moradores e Comerciantes e repassada aos mais necessitados da favela. A Folha os acompanha desde então.

Vim sozinha pra São Paulo. Eu tinha 16 anos. Acabei a escola e minha mãe ajudou a comprar a passagem. Tenho uma prima que mora aqui. Só tinha visto ela quando eu ainda era bebê. Não conhecia mais ninguém aqui.

Fui morar com ela numa quitinete na avenida São João, lá no centro, mas era muita bagunça, drogas. Ela morava com mais três rapazes. Não dava para ficar lá. Arrumei um emprego de balconista na José Paulino e me mudei para a avenida Rio Branco. Ganhava R$ 930.

Conheci o Hebert e depois de dois meses fomos morar juntos em Interlagos [bairro da zona sul paulistana]. Um dia viemos visitar o pai dele aqui em Paraisópolis e vimos como o aluguel era muito mais barato. A gente mudou para cá e eu comecei a trabalhar vendendo gás. Trabalhava 12 horas por dia, não tinha horário para almoçar, e o dono não me pagava em dia. Foi aí que comecei a fazer faxina. Até aparecer esse "corona", fazia duas por semana, R$ 70 cada.

Nunca tive condições de voltar para Irecê. Minha mãe vive lá com R$ 80 do Bolsa Família, e meu pai recebe R$ 100 por semana, quando trabalha a semana toda, na roça. Não, a terra não é dele.
Mas com essa doença aí, eles estão todos dentro de casa. Então é só o dinheiro do Bolsa Família mesmo. Se eu pudesse voltava pra lá.

Por que? Porque aqui é uma ilusão. Tudo é muito caro, o aluguel é caro, o custo de vida. Eu via uma coisa na televisão, achava lindo —não que não tenha, tem, mas não dá. No fim, não é nada do que eu esperava que fosse. Achei que iria conseguir juntar dinheiro e poder ajudar meus pais.

Fora daqui, de Paraisópolis, o aluguel é muito pior. Mas aqui é uma favela, né? Então tem muita coisa que não sou acostumada, que não cresci vendo. Não é um lugar que você senta na porta e fica tranquila. Se pudesse iria para outro lugar.

Pra onde? Pra Bahia. Lá você consegue comprar uma casa por R$ 25 mil, R$ 30 mil. Casa boa, com dois, três cômodos. Não precisava ser uma casa luxuosa, só queria um lugar que fosse meu, em que nunca mais eu passasse por tanta humilhação.

Eu perdi 19 kg em três meses. Foi depois que o dono pediu a casa em que a gente morava. Acho que é depressão. Não comia, só chorava. Ele falou que tinha vendido, mas passei lá ontem e ela tá vazia. Isso dá um choque na gente. Como é o ser humano, né?... Eu me apego a Deus e a meus filhos... Não tenho mais lágrimas para chorar.

Diário da privação

Em Paraisópolis, morador narra angústia de não ter comida, emprego e moradia definida em meio à pandemia

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