Descrição de chapéu Coronavírus

Por até dois anos, vamos ter de alternar períodos de abertura e quarentenas, diz Atila Iamarino

Biólogo sensação no YouTube diz que coronavírus ficará no nosso cangote por um tempo e fará a gente repensar como a sociedade funciona

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São Carlos (SP)

Até o começo deste ano, o biólogo Atila Iamarino, 36, era mais conhecido por atuar como o apresentador bonachão do Nerdologia, canal do YouTube que conquistou quase 3 milhões de inscritos ao abordar temas da cultura pop, de “Game of Thrones” aos heróis da Marvel, com a ajuda das ferramentas da ciência. Diante da pandemia da Covid-19, ele decidiu empregar sua formação em virologia (um doutorado sobre moléculas do HIV que “picotam” proteínas, concluído em 2012 na USP) para explicar as descobertas sobre o novo coronavírus a um público amplo na internet.

As “lives” (transmissões de vídeo ao vivo) sobre o Sars-CoV-2, apresentadas no canal pessoal de Iamarino, acabaram acumulando milhões de visitantes (a mais vista alcançou, até agora, 5,4 milhões de visualizações). Ao público jovem e “nerd”, que já era seguidor fiel do divulgador científico nas mídias sociais, somaram-se pessoas de outras faixas etárias e formações, tentando entender a ameaça que a nova doença representava.

O biólogo foi um dos primeiros a destacar as implicações do modelo matemático sobre a propagação do novo coronavírus feito por pesquisadores do Imperial College de Londres. Extrapolando os dados britânicos para o Brasil, ele alertou que, se nada fosse feito, havia o risco de que mais de 1 milhão de pessoas morressem no país por causa da Covid-19.

Acusado de catastrofista por apoiadores do presidente Jair Bolsonaro e recordista de audiência em sua participação no programa Roda Viva, da TV Cultura, Iamarino diz que, mais do que esperar descobertas-relâmpago de vacinas e remédios, é preciso fazer o básico: testar cada vez mais pessoas para verificar a presença do vírus, obter a quantidade necessária de máscaras e outros equipamentos de proteção e repensar a maneira como a sociedade vai funcionar nos próximos dois anos, provavelmente alternando períodos de abertura e novas quarentenas.

O biólogo Atila Iamarino em gravação para seu canal no YouTube em 2016
O biólogo Atila Iamarino em gravação para seu canal no YouTube em 2016 - Karime Xavier/Folhapress

Qual foi o momento em que, da sua perspectiva, “caiu a ficha” sobre o risco global representado pela doença? Em janeiro, sua preocupação não era tão grande quanto nas últimas semanas, certo?
Foram dois pontos de virada. No começo, o que eu dizia era o seguinte: o problema maior vai ser quando a gente tiver casos fora do território chinês. Se a China não contivesse o vírus, ninguém conseguiria – tanto pelo preparo e pela competência, pelas experiências anteriores que eles tiveram com a Sars [doença respiratória grave também causada por um coronavírus], quanto pelo autoritarismo. Ninguém seria capaz de agir tão cedo, nem passando tanto por cima do bem-estar individual para priorizar o coletivo, quanto eles.

Ficou óbvio que era algo muito perigoso e problemático com o crescimento dos casos na Itália, no Irã e na Coreia do Sul. E aí a segunda ficha caiu quando eu li as projeções do que poderia acontecer.

Os modelos do Imperial College de Londres, com cerca de 1 milhão de mortes no Brasil se nada fosse feito?
Sim. E a questão nem é o número em si, mas o intervalo de tempo. Com isso, como virologista, já dá para saber o que vai acontecer. Se ninguém tem imunidade, e se o vírus é transmitido pelo ar, uma hora vai chegar aqui, e o pico disso vai acontecer muito rápido, em dois ou três meses: abril, maio, no máximo junho.

Ou seja, mesmo que se faça muita coisa, você descobre que não existe tempo hábil para a ação humana coordenada – a não ser o isolamento social. Mesmo que remédios como a cloroquina ou vacinas deem todos os resultados positivos e incontroversos que a gente gostaria de ver, não tem condição de produzir essas coisas em quantidade suficiente para fornecê-las às pessoas que precisam delas no tempo necessário.

Uma frase sua que causou muito impacto é a seguinte: as pessoas estão querendo voltar para um mundo que não existe mais. Mas muita gente parece estar interpretando isso de modo bem mais apocalíptico do que o pretendido. Qual é o sentido mais preciso dessa frase?
Primeiro, é preciso ter em mente que, até a gente contar com uma vacina 100% segura, ou tão segura quanto possível, vai ser preciso esperar alguns anos. É possível que a gente fique, no começo, com uma vacina temporária, que funciona, mas é problemática para alguns grupos. Isso já aconteceu com a poliomielite, por exemplo.

Então, no mínimo por um ano, mas mais provavelmente por dois anos, a gente vai ter de alternar períodos de reclusão com períodos nas ruas, construindo o máximo possível de infraestrutura, criando um funil largo, digamos, que permita que a gente abra a torneira.

E isso porque, ao contrário do que parece para algumas pessoas, ninguém quer parar o mundo, mas a gente vai precisar mudar diversos comportamentos. Coisas como evitar o contato físico com as pessoas, evitar multidões e um uso mais comum das máscaras de proteção vão continuar sendo necessárias.

Como vai ser isso – se a gente trabalha fora de casa por três dias e fecha outros quatro, se passa 20 dias fechados e três meses abertos –, muitas pessoas estão discutindo agora.

Mas é um território novo. Vamos passar um bom tempo com esse vírus no nosso cangote e, quando houver uma abertura, as coisas não vão voltar ao que eram. As pessoas vão sair diferentes disso. O consumo de maconha subiu muito nos EUA, o de álcool explodiu no mundo todo, as crianças estão convivendo com os pais numa intensidade muito maior, os profissionais de saúde vão enfrentar um período muito traumático ficando doentes, tendo de trabalhar desprotegidos.

Uma coisa que muita gente ainda não entendeu, quando compara o número total de mortos pela Covid-19 com os mortos em acidentes de trânsito, por exemplo, é que uma quantidade comparável de mortes, que ficaria “espalhada” ao longo de um ano, está se acumulando em poucas semanas ou até dias. Com o agravante de não poder fazer enterro, não poder velar os mortos nem conviver com quem está morrendo, com caminhão levando corpo para a vala comum. É algo que podia ter sido um trauma cotidiano há cem, 200 anos atrás, mas tinha acabado.

Essa falta de uma memória histórica do que é uma doença infecciosa com mortalidade considerável distorce as coisas, certo? Temos gente dizendo que a Covid-19 mata “só 1%” dos infectados, mas fazia muito tempo que uma doença infecciosa não matava dessa maneira. As pessoas não percebem que, para os padrões atuais, 1% é muita coisa.
Sim, ao ponto de existir gente que dispensa vacinas. A existência de um movimento antivacinas é reflexo desse conforto. As pessoas não sentem, não internalizam a diferença que isso faz.

Os mais otimistas apontam que o momento atual é de recuperação da confiança na ciência e na importância de agir com base em fatos e evidências. O sr. concorda?
Não é preciso nem falar da ciência. A gente vê isso só pelos índices de audiência da TV ou de leitura de jornais.

Em períodos de bonança, o que fica evidente na cabeça das pessoas é só o viés. Fica todo mundo tentando achar quem critica ou elogia o próprio time, seja de direita ou de esquerda. Opiniões, fatos, histórias, narrativas, tudo tem de cair nisso. Mas agora a gente percebe que as mídias sociais não são o melhor lugar para você procurar fatos. Esse ruído tremendo sobre quem se curou ou não, se tem lugar escondendo mortos, se vinagre mata o vírus – um absurdo completo que acabou viralizando – só tem lugar nas redes sociais mesmo. As pessoas estão percebendo a diferença que faz uma curadoria profissional das informações.

No caso da ciência, esse efeito talvez demore bem mais tempo para ser sentido, mas é muito importante, inclusive para mudar a vida das pessoas, mostrar que até as coisas mais simples, como o ato de lavar as mãos, tiveram de ser estabelecidas com base em evidências científicas, enfrentando, inclusive, uma oposição tremenda. Desse ponto de vista, é uma oportunidade importante.

Medicamentos antivirais que sejam eficazes e precisos são muito raros. Por que é tão difícil criá-los?
O problema principal são os poucos alvos – mais ou menos o mesmo problema das drogas anticâncer. Os vírus dependem das nossas células para quase tudo, assim como o câncer, que surge a partir das células do organismo, então é difícil achar algo que atinja os vírus e não nos afete. As bactérias, por outro lado, são muito diferentes de nós, com sua própria estrutura celular, com seu metabolismo maluco, então é mais fácil atacá-las.

Eu sou muito cético quanto ao afã atual de achar rapidamente vacinas e remédios. No momento, há o risco grande de usarem o que parece ser um caminho nobre para validar interesses ou para ganhar reconhecimento por ter resolvido o problema.

Qual seria a pergunta científica sobre o vírus que teria o maior impacto prático neste momento, se fosse possível respondê-la?
Tem uma que vai se tornar importante lá na frente, que é saber quão protetora é a imunidade que se ganha ao ser infectado e se curar, se ela vai desaparecer rápido, se vai ter um efeito gradual de proteção.

Mas, no curto prazo, o crucial tem muito mais a ver com questões práticas: vamos ter capacidade de produzir nossos próprios testes no Brasil e fazer alguns milhões deles por semana? De produzir equipamentos de proteção individual para ajudar primeiro o corpo médico e depois as pessoas mundo afora? Parte do meu desespero nas “lives” do YouTube teve a ver com a percepção de que a gente tinha parado muito cedo de testar as pessoas e tinha começado a ficar no escuro.

Seus vídeos e suas entrevistas são caracterizados por um escrúpulo muito grande em evitar discussões que sejam diretamente políticas. Em geral, você nem cita políticos pelo nome. Mesmo assim, virou alvo de apoiadores de Bolsonaro. Como lidou com essas reações?
Foi o que mais me deu desgosto. Não tem cabimento reagir assim a essa altura da situação. Parece ser uma inércia muito grande de gente que vem fazendo isso há anos, apontando culpados ou fingindo que um problema sério não existe, o que é uma estupidez.

Quando são coisas como vacinar ou não os filhos, ou o aquecimento global e as queimadas na Amazônia, eu até entendo. A mente humana não compreende essas coisas sem a ciência. É a mesma coisa com ratos – se um deles come um veneno e só morre três dias depois, os outros ratos não conseguem aprender que aquela comida é venenosa e comem também. É uma falha mental humana, algo natural.

Se pelo menos quem está protestando estivesse andando de mãos dadas na rua para dizer que está tudo bem...

... e não fazendo carreatas fechados dentro dos próprios carros.
Pois é. Isso dá a impressão de ser gente que não está ignorando de fato o risco, gente que está informada tentando convocar quem não está informado.

E eu estava falando o óbvio. Não estava dizendo que isso era uma lição para a humanidade pagar renda básica para todo mundo, ou coisa parecida. Ver gente perdendo tempo na internet para escrever bobagens sobre isso em várias mídias sociais diferentes... o fato de que ainda exista esse tipo de ocupação a esta altura do campeonato é ultrajante.

A questão geopolítica se misturou à ciência por causa da origem da pandemia na China. Onde fica o ponto de equilíbrio entre reconhecer o esforço chinês para enfrentar o problema e apontar a falta de transparência e os problemas ambientais e de higiene que podem ter levado à origem do vírus em mercados do país?
A gente está num período incerto, e o panorama que leva à compreensão exata de como o problema surgiu leva anos para ser construído de modo mais preciso, como aconteceu com a Sars. Não é nem questão de dizer que a China “agiu certo” – ela agiu com competência, são coisas diferentes. Nesse primeiro momento, apontar o dedo para os culpados não ajuda muito.

É claro que todo mundo sabia que os mercados de animais vivos, com mistura de espécies domésticas com espécies selvagens, eram uma bomba-relógio. O fato de que a gente está até agora discutindo se esse vírus veio de pangolim ou de morcego é prova disso, mas também temos casos em que esse trajeto dos vírus emergentes acontece sem mercados, como na Austrália ou em outras partes da Ásia.

Nada impede que algo assim pudesse acontecer num mercado popular de Manaus ou de Belém, certo?Sim, seria possível. A nossa sorte é que os grupos de primatas que vivem no Brasil são menos próximos do ser humano, diferentemente dos da Ásia, e os nossos morcegos não voam em bandos tão grandes quanto os asiáticos, o que dificulta a transmissão dos vírus. O fato de que existiam muitos precedentes aumenta a responsabilidade chinesa, mas também faltou seriedade na preparação dos demais países, inclusive do Brasil. E, no fim das contas, os EUA voltaram a se aproximar da China, e quem está exportando teste e equipamento é a própria região de Wuhan, por ironia.

A Covid-19 nem é o pior que a natureza poderia jogar na nossa cara. A gripe aviária tem potencial de ser mais letal e mais rápida, pelo ciclo do vírus – a gente veria acontecer em um mês aquilo que vimos ao longo desses três últimos meses que parecem anos.

Eu espero que caia a ficha mundial a respeito da diferença que faz a cooperação internacional, a publicação rápida de artigos científicos de livre acesso, a capacidade de solucionar problemas conjuntamente.

Será que existe uma relação inversa entre a gravidade da doença e a facilidade com que ela se espalha? O vírus poderia fazer uma espécie de “troca” evolutiva, ficando mais transmissível, mas também menos letal?
Eu sinceramente espero que a gente não precise descobrir se isso é verdade ou não. Se o compararmos com a Sars, que se transmitia menos e matava 10% das vítimas, parece que o Sars-Cov-2 “trocou” essa letalidade maior pela capacidade de ficar nas vias respiratórias superiores. Mas não dá para ter certeza.

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