Descrição de chapéu câncer

Em livro sobre seu câncer, Dimenstein vira tema de sua última reportagem

Obra relata as dores da doença, mas trata, sobretudo, das novas dimensões de amor e de beleza descobertas no final da vida

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São Paulo

Foi por meio de um sonho premonitório que Gilberto Dimenstein intuiu que tinha câncer. A experiência foi tão impactante que ele passou por cima do ceticismo que sempre pautou a carreira jornalística e, mesmo se sentindo saudável e sem nenhum sintoma, resolveu investigar.

Após uma série de exames, descobriu um tumor no pâncreas. Três semanas depois, foi informado de que havia metástase no fígado.

Começava ali a jornada que se encerrou com a sua morte no dia 29 de maio último, aos 63 anos. Toda a trajetória do jornalista criador do site Catraca Livre está relatada no livro “Os últimos melhores dias da minha vida”, escrito em parceria com a mulher, a jornalista Anna Penido.

Lançada em novembro, a obra relata as dores do tratamento, mas fala, principalmente, de amor, de beleza, de gratidão e de aceitação diante da morte.

“Eu não sabia o que era o amor de verdade, nem que seria possível amar outra pessoa com tamanha profundidade. Nunca, nem remotamente, imaginei que experimentaria o nível de cumplicidade que passei a ter com a Anna”, diz ele em um trecho.

Jornalista premiado e que escreveu na Folha por 28 anos, Dimenstein virou o tema da sua última reportagem, sobre como foi receber o diagnóstico de um câncer agressivo, as perspectivas e as reflexões a partir de então e como viveu até o fim da vida.

Embora o seu tratamento oncológico tenha se baseado na ciência do começo ao fim, ele transitou também pelo mundo espiritual: foi da limpeza energética da casa e rituais do candomblé à cirurgia espiritual.

"De repente, todo o meu racionalismo iluminista começou a se misturar com especulações sobre o insondável. Compreendi que, por trás de muitas dessas experiências místicas, prevalecia a ideia de que precisamos nos conectar a uma força maior para acreditar no futuro."

Ao mesmo tempo, contou com o apoio de familiares, amigos, conhecidos e desconhecidos, espalhados por todos os continentes, que se uniram em orações de todos os credos.

Não foram dias fáceis. Mas mesmo com as desilusões pelos insucessos dos tratamentos e os desconfortos da quimioterapia, Dimenstein não se desconectou com o melhor que a vida podia lhe oferecer.

"Quanto mais o câncer me subtraía, mais eu conseguia agregar novas dimensões à minha existência. A diferença estava na maneira criativa com que olhava para a realidade à minha volta."

Nas brechas entre um ciclo de infusão e outro, em que o cansaço, a febre e a falta de apetite davam uma trégua, ele se entregava ao mundo encantado das compensações.

“Além de comer com prazer, brigava com a inércia. Dizia que eu também precisava dar uma canseira no câncer, já que ele me dava tanto cansaço. Então, pegava minha bicicleta e pedalava até a sorveteria. Pensava comigo mesmo: 'Como é bom estar vivo'”.

Na fase final da doença, amigos como o pianista e maestro João Carlos Martins tiveram efeito mais poderoso que antibióticos, segundo relata o jornalista. O neto Zeca, 3, também era antídoto para muitos dos seus desconfortos com a doença.

No livro, Dimenstein discorre sobre os efeitos da pandemia de coronavírus na sua vida, como a apreensão diante do confinamento, quando começou a pensar que nunca mais iria a cinemas, teatros e concertos, e a tristeza de não ter mais o neto e os filhos por perto, embora aplicativos como o Zoom os mantivessem sempre conectados.

Houve também tempo para se emocionar com as manifestações de solidariedade que a crise sanitária proporcionou, como jovens que deixavam comida na porta dos idosos ou o trabalho colaborativo entre os cientistas para acelerar a produção de uma vacina capaz de conter o vírus.

E sobraram decepções com os “doentes patológicos e patologistas presumidos” que se posicionavam contra o isolamento social.

“O presidente Jair Bolsonaro insistia em contrariar princípios básicos da ciência, descumprindo todas as recomendações das organizações e profissionais de saúde. Ou seja, o próprio líder da nação estimulava a disseminação do vírus, sandice que não encontrava paralelo em nenhum país civilizado”, escreveu.

Quando recebeu o veredito de que não havia mais saídas terapêuticas para o seu caso, Dimenstein relata que não se desesperou.

“Ganhei uma sensação de bem-estar, contentamento, falta de compromisso. Na ausência de um futuro possível, me sentia totalmente entregue ao destino. Não havia mais nada que precisasse fazer.”

Com o estado físico cada vez mais debilitado, a sua maior preocupação era a de não sentir dor. Decidiu, então, procurar uma médica especializada em cuidados paliativos, Ana Cláudia Arantes, autora do livro "A morte é um dia que vale a pena viver" (Sextante).

No ritual de despedida, Dimenstein pediu desculpas a pessoas com as quais achava que não havia sido correto. “A reconciliação com os meus remorsos me apaziguou e meus dias transcorriam cheios de contentamento no nível dos afetos.”

Tinha pavor de se imaginar preso a uma cama. Não queria morrer daquela maneira. Quando passou a sofrer alucinações e já não conseguia mais comer ou dormir, decidiu que era a hora de ser sedado. Antes, despediu-se da mãe, dos irmãos e ouviu deles o quanto o amavam.

Morreu em casa dormindo, cercado da mulher e dos filhos, embalado com sua música tema: “Clube da Esquina 2”. “Porque se chamava homem, também se chamavam sonhos, e sonhos não envelhecem”.

Os últimos melhores dias da minha vida
Gilberto Dimenstein e Anna Penido (Record, 2020); R$ 34,90

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