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Falta de coordenação na pandemia travou uso de dinheiro repassado a estados, diz estudo

Socorro federal permitiu reforçar gastos em saúde, mas de forma desigual, segundo pesquisadores

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São Paulo

A falta de coordenação entre o governo federal e os estados no enfrentamento da pandemia de Covid-19 impediu o aproveitamento de grande parte dos recursos repassados em caráter emergencial aos governos locais, de acordo com um estudo acadêmico sobre o uso do dinheiro.

Produzido por integrantes da Rede de Pesquisa Solidária, o trabalho mostra que o socorro federal foi mais do que suficiente para cobrir perdas sofridas pelos estados com a retração econômica, mas ainda assim só uma parcela foi usada para custear as demandas crescentes do sistema público de saúde.

Segundo o levantamento, os recursos extras permitiram que os gastos dos estados com saúde aumentassem no ano passado 11% em termos reais, descontada a inflação. Mas esse aumento foi desigual, e dois estados, Goiás e Minas Gerais, até reduziram despesas na área, apesar do auxílio recebido.

"O socorro federal demorou a chegar e as incertezas sobre a pandemia e seu impacto econômico fizeram muitos governadores segurarem o dinheiro", afirma a economista Ursula Dias Peres, da USP (Universidade de São Paulo), uma das autoras do estudo. "Isso poderia ter sido evitado com ações conjuntas."

Várias medidas de apoio financeiro a estados e municípios foram tomadas por iniciativa do governo federal e do Congresso no ano passado, incluindo transferências diretas para compensar perdas de arrecadação, repasses dirigidos à área de saúde e suspensão do pagamento de dívidas com a União.

Em seu conjunto, essas providências representaram uma ajuda de R$ 88 bilhões para os governos estaduais, se for incluída na conta a economia no pagamento das dívidas, que teve que ser retomado em janeiro. A maior parte das transferências foi feita em quatro parcelas, de junho a setembro.

Os repasses de caráter emergencial se somaram às transferências que a União já faz habitualmente, por determinação da Constituição, para repartir recursos com estados e municípios. Eles permitiram que os estados tivessem à sua disposição no ano passado receitas 2,4% superiores às de 2019.

Com a retração da atividade econômica, a maioria dos governadores sofreu perdas na arrecadação do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços), principal fonte de receita própria dos estados, mas o prejuízo acabou sendo menor do que o previsto nos primeiros meses da pandemia.

O auxílio emergencial pago pelo governo a trabalhadores atingidos pela crise, que sustentou o consumo e alguma recuperação econômica no fim do ano, contribuiu para evitar perdas maiores. Somados os 26 estados e o Distrito Federal, a arrecadação de ICMS caiu 2,4% em 2020, descontada a inflação.

Nos cálculos dos pesquisadores, o aumento de gastos dos estados com saúde representou uma injeção de R$ 12 bilhões no sistema público ao longo do ano passado, dinheiro equivalente a 27% dos R$ 45 bilhões em transferências recebidas de Brasília, sem contar a suspensão do pagamento das dívidas.

Isso significa que a maior parte dos recursos foi usada para financiar outras atividades. De acordo com os boletins financeiros analisados pelos pesquisadores, também houve aumentos expressivos nos gastos dos estados com aposentadorias e pensões de servidores públicos e assistência social.

São Paulo, por exemplo, perdeu R$ 6,5 bilhões na arrecadação do ICMS, recebeu R$ 7,8 bilhões em auxílios do governo e aumentou em R$ 2 bilhões suas despesas com saúde. Ou seja, a maior parte das transferências foi usada para manter outras políticas estaduais, não para enfrentar a pandemia.

Um padrão semelhante foi identificado pelo estudo mesmo em estados que tiveram aumento de receitas próprias no ano passado, como os do Centro-Oeste. Na maioria dos estados, o aumento de gastos com saúde foi equivalente a menos da metade do valor dos repasses emergenciais da União.

"Sem planejamento e coordenação, é difícil aumentar despesas e oferecer novos serviços no setor público", afirma Fabio Pereira, técnico da Câmara Municipal de São Paulo que participou do estudo da Rede de Pesquisa Solidária. "Leva meses para pôr um projeto novo de pé, ainda mais no fim do ano."

Incertezas sobre a economia também contribuíram para a conservadorismo dos estados, dizem os pesquisadores, porque só no últimos meses do ano ficou evidente o efeito do auxílio emergencial para sustentar o consumo e a arrecadação dos estados, contrariando as previsões pessimistas anteriores.

Os gastos dos estados com educação caíram 9% no ano passado. Com escolas fechadas por causa da pandemia, era esperado que isso acontecesse, mas os pesquisadores observam que os estados também deixaram de investir em recursos para ensino remoto e no preparo para retomar aulas presenciais.

Mesmo estados que tiveram ganhos na arrecadação de receitas próprias reduziram suas despesas com educação. "Houve falha de planejamento, e a ausência de coordenação federal também pesou", diz Peres. "A falta de estratégia compromete a retomada das atividades de ensino com segurança."

Nas últimas semanas, com o aumento acelerado de novos casos de infecções e mortes por Covid-19, os estados passaram a defender medidas mais rigorosas de distanciamento social para evitar o colapso do sistema de saúde pública e voltaram a pressionar o governo federal a mobilizar recursos.

No domingo (28), o presidente Jair Bolsonaro divulgou no Twitter valores de repasses federais aos estados, sem discriminar transferências obrigatórias e verbas de caráter emergencial. Governadores reagiram à provocação com críticas à atitude do presidente e às distorções na apresentação dos dados.

Estados e municípios, que também receberam socorro federal no ano passado, chegaram ao fim do ano com R$ 83 bilhões disponíveis em caixa, o dobro do saldo verificado no ano anterior, segundo o Banco Central. A maior parte desse dinheiro estava com os estados, que tiveram sobra de R$ 72 bilhões.

Isso mostra que os governadores entraram neste ano com uma situação financeira mais confortável, mas os pesquisadores ressalvam que isso não significa que estejam preparados para lidar com o recrudescimento da pandemia, sem novas medidas e sem cooperação com outros níveis de governo.

"Não há perspectiva de novo socorro federal, e o auxílio emergencial dos trabalhadores, se for retomado, terá impacto menor do que no ano passado", afirma Peres. "A situação é bem mais complicada agora, e por isso a coordenação de esforços será importante para o bom uso dos recursos disponíveis".

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