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Coronavírus Trincheira Covid

Das pequenas colossais alegrias

Ver numerinhos do oxímetro subindo é quase como assistir ao meu filme preferido, relata médica em diário

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Fernanda Wendel

Médica com residência de Medicina de Família e Comunidade, atua como socorrista do Samu e em pronto-socorro de São Paulo

Um dos comentários que mais me entristece é ouvir que a gente só fala em desgraça, “parece até que comemoram o número de mortos”.

Acho perfeitamente compreensível que sigamos espantados e indignados com a quantidade diária de mortos por Covid-19 no Brasil. O que não acharia normal seria ignorar uma perda semelhante ao 11 de Setembro por dia, todos os dias, como a gente tem vivenciado.

Fazer vista grossa às filas por vagas nos hospitais, à sobrecarga das equipes, à falta de medicamentos e oxigênio ou ao congestionamento de ambulâncias esperando leito para os pacientes, isso sim me pareceria muito tétrico. Este seria o sinal de que nos desumanizamos, deixamos de nos preocupar com a dor dos nossos semelhantes e naturalizamos milhares de mortes bastante sofridas que poderiam ter sido evitadas.

Porém, como precisamos de alegrias para seguir a luta, dou-me a liberdade de compartilhar conquistas que colorem este cotidiano que tem sido tão pesado. Parece bobagem, mas, cada vez que conto para um familiar que os exames do paciente estão estáveis, encho-me de esperança. Significa que a pessoa não piorou (talvez não tenha melhorado, tampouco agravou ainda mais).

Enfrentar um quadro de Covid grave não é atravessar uma corrida de 100 metros rasos. É uma ultramaratona, que geralmente leva semanas. São passos lentos, avanços de formiguinha a cada dia, que conduzem o doente à recuperação.

É preciso ter muita paciência, ater-se aos ajustes finos e saber que, no meio do caminho, encontraremos alguns regressos. Uma infecção bacteriana por causa da intubação prolongada, uma alteração renal, uma anemia que não existia. E cada complicação dessa que superamos parece que foi uma enorme conquista.

Avaliar que o pulmão melhorou e está na hora de começar a diminuir a taxa oferecida de oxigênio, começando a programação para a extubação (que é a retirada do tubo), é como chegar nos últimos dez quilômetros da corrida. Exatamente, ainda resta um caminho longo pela frente.

Contudo, mesmo que aos pouquinhos, fazer esse desmame do oxigênio com sucesso dá um ânimo tremendo.

Ou a via contrária, quando recebo um paciente muito mal, com muita dificuldade respiratória, e ele reage muito bem à máscara de oxigênio ou às manobras de fisioterapia, sem precisar intubar. Ver aqueles numerinhos do oxímetro subindo: 80%, 84%, 86%, 87%, 90%... é quase como assistir ao meu filme preferido.

E não preciso nem falar da emoção que é saber que alguém teve alta. Depois de semanas, até meses, deve soar como uma sinfonia a voz pelo telefone dizendo: sua pessoa amada está pronta para ir para casa, você poderia vir buscá-la?

São alegrias numa proporção menor do que gostaria que fosse, porque as tristezas acabam sendo mais volumosas. Mas, a cada vitória dessas, parece que vem o combustível para seguir adiante e dar meu máximo para que outros pacientes possam voltar a abraçar a vida.

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